Thursday, March 05, 2009

Carência

Cortar o dedo tinha doído. Na verdade, no auge de seus 6 anos de idade, doía horrores. A pele rompida bruscamente pela faca que só estava em sua mão porque queria imitar a Clô... O sangue escorrendo pela mão impregnada com aroma de laranja-lima, aquela mesma que ela tentara descascar segundos antes, como fazia a Clô... Doía ainda mais o fato da mesma Clô não estar na cozinha no momento em que deu-se a tragédia. A pobre mulher, que trabalhava na casa desde que a menina tinha nascido, deixou a faca e um punhado de laranjas-limas em cima da pia para correr na sala e atender o telefone que tocava. Era a mãe da menina do outro da lado linha, avisando que chegaria novamente mais tarde do trabalho.
Quando a menina gritou na cozinha o coração de Clô apertou. O choro continuou alto e a moça tratou logo de dispensar a mãe pra acudir a filha. Achou melhor não fazer alardes e se despediu sem mencionar berro algum. Pensou lá com suas minhocas que não estava ao lado da menina quando sabe-se lá o que se sucedeu, então não levantaria lebres precipitadamente com a patroa.
Fone no gancho, adentrou a cozinha apreensiva. E lá estava a menina com a mão rubra de sangue escorrido e a cara vermelha de choro sentido de criança pequena.
- Mas o que é que você aprontou menina?
O choro saiu ainda mais alto e dolorido. Somou-se ao susto, ao corte, ao sangue, a dor e ao abandono, a culpa e o encabulamento. A culpa por ter mexido onde não devia e a vergonha pela falha de não ter conseguido cortar a tal da laranja-lima com a destreza de sua babá.
Clô pegou a menina no colo e correu para a pia. Abriu a torneira e enfiou a mão da pequena na água. Em troca ganhou urros histéricos, ainda mais escandalosos e sofridos. A água fria que inundava a carne quente despertava novamente na criança a dor do corte, que já começava a ficar amortecida.
- Menina levada!
- Buáaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
- Agora vai ficar aí chorando até secar!
Subiu as escadas da casa com a criança ainda no colo, abriu a porta do banheiro e tirou de dentro do armário debaixo da pia a caixa de medicamentos. Passa remédio, põe curativo, dá beijinho no corte.
O choro já ía mais baixo. Aumentava um pouco só quando os olhos das duas se cruzavam sem querer, como que se a garota cobrasse com o olhar a compaixão para com sua dor. Clô, então, olhava pra baixo e soltava um suspiro.
Desceu as escadas de volta e colocou a menina deitada no sofá. Ligou a tv, o dvd e colocou lá um desenho qualquer. Os olhos úmidos da criança, que miravam o dedo circundado de esparadrapo, mudavam o foco agora que a tela de lcd brilhava colorida. A mão sem curativo esfregava a cara molhada, enquanto o dedão da mão estrupiada encontrava abrigo na boca, que a chupava confortavelmente.
O nariz puxou forte a corisa para dentro. 1, 2, 3 vezes. Ainda deu uma engasgadinha ou outra nas lágrimas antes do personagem favorito começar a conversar com ela. Deitou a cabeça na almofada e pediu pelo cobertorzinho.
Dormiu.
Só acordou bem depois com o barulho da chave da mãe destrancando a fechadura. Abriu os olhos e logo se colocou sentada.
- Oi minha princesinha. Como é que voc... Meu deus, o que aconteceu com o seu dedinho?
Foi o suficiente para os olhos da pimpolha se encherem de água, e no segundo seguinte, quando a mãe correu a sentar ao seu lado, cair no choro novamente.
Ela apertava a menina contra o peito enquanto gritava pela presença - e consequentemente explicação - de Clô. Segurava o nó na garganta que queria chorar a dor da filha. Sentia muito não ter estado ao lado dela quando se machucou. Culpava-se pela ausência constante.
Tão logo a mulher explicou o ocorrido a mãe acusou-a de desatenta e irresponsável por não ter visto a menina pegar a faca. A oportunidade de tirar aquela culpa de dentro de si e passar adiante se fazia presente e ela não perderia a chance de transferir a responsabilidade só para ter seu coração mais tranquilo.
Diante da discussão, que desviara a atenção da mãe de seu sofrimento com o corte no dedo, a menina tratou de chorar mais alto. A mãe lhe cobriu de beijos no rosto, dizendo que logo o dodói passaria. Clô, que estava mais uma vez fazendo horas extras sem fim e não remuneradas, diante da acusão da patroa, calou-se com a cabeça baixa e voltou para a cozinha. Pegou suas coisas depressa, apagou a luz e antes de sair da casa avisou com a voz seca que não fizera o jantar.
A mãe, com a filha no colo, ligou a tv, o dvd, apertou o play, sorriu com o personagem preferido da menina e dormiu no sofá com a cria nos braços durante as poucas horas que conseguia ficar a seu lado.

2 comments:

mudoo said...

Algumas coisas só se aprende tentando mesmo.

Cla said...

adorei