Monday, May 14, 2007

Tempo



No último telefonema quando perguntou ao avô se tudo andava bem, ouviu uma menção de lamúria. Então era mesmo verdade, pensou. A avó já havia alertado que ele vinha desgostoso com a vida, talvez um pouco inconformado por não ter empacotado. Batido as botas de uma vez.
- Ah, Carola! Bem eu estou. Sempre estive. O problema é estar há quase noventa anos. Isso, de viver, está me cansando um pouco!
Enterrou a mãe, o pai, os três irmãos, a filha, um neto e a bisneta prematura. Constituiu duas famílias, viajou o mundo, aprendeu línguas, ganhou muito dinheiro, perdeu outro tanto.
Há anos acorda todo dia antes do Sol nascer. Levanta rápido e toma uma ducha gelada para despertar todas as células de uma só vez. Toma um café preto e pão com manteiga que deixara premeditadamente em cima da mesa na noite anterior para amanhecer cremosa. Duas ou três fatias de queijo e um passeio pelo bairro completam a rotina antes do trabalho. Antes corria. Depois passou a trotar e por fim, andava rápido por quase uma hora.
Formou-se advogado no final da década de 30 do século passado no Largo São Francisco. Nessa ocasião morava no centro de São Paulo, onde montou escritório, o mesmo em que advoga até hoje. Nos dias frios, levantava pelado da cama, vestia o sobretudo, e chegava até a banca da esquina. Comprava quadrinhos, o jornal do dia e barras de chocolate.
Primogênito, foi o último a casar. Jamais resistiu a um rabo de saia. Entregou-se a paixões ardentes e casos banais. Amou as mulheres – todas que pode – até quando isso lhe foi permitido. Do primeiro matrimônio vieram duas filhas. No seguinte apenas um menino. Carola, a neta mais nova e preferida, era rebento da filha falecida.
Cozinheiro de mão cheia esteve sempre a frente do menu do almoço de domingo. As duas esposas nasceram sem dom algum para a culinária. Já a neta tinha herdado suas habilidades.
Quando ainda usava fraldas e começava a equilibrar-se em cima do par de pernas gordinhas, Carola enroscava-se nas pernas do avô interessada em provar antes dos outros as receitas do patriarca. Ele pegava a menina no colo e a deixava sentada em cima da mesa. Ao virar as costas ela dava um jeito de descer pelas cadeiras e arrastava-se até perto do fogão novamente. O paladar por chocolate comprovou-se hereditário além do hábito de andar sem roupas pela casa.
Morou alguns anos da infância com ele. Depois, adolescente, revezava entre as casas dos pais separados e a dos avós queridos. Voltava da escola e passava as tardes escrevendo nas enormes e antiguíssimas máquinas de escrever do velho. Ele voltava do escritório pouco antes das 17h, colocava a pasta na escrivaninha, beijava a testa da garota e ia para a cozinha. Na mesa a avó havia deixado salada, a travessa de arroz e um grande bife cru. Ele ligava o radinho de pilha e fritava a carne de leve, para ser servida ainda sangrando. No prato fatiava duas ou três pimentas de cheiro e misturava com as folhas. No arroz pingava ainda algumas gotas de um combinado de outras pimentas em conserva.
Após o almoço subia para o quarto com o jornal embaixo do braço. Recostava-se na cama e punha-se a ler duas ou três manchetes. Depois pegava no sono. Muitas vezes com o palito de dentes na boca e o jornal caido em seu peito, subindo e descendo a cada roncada barulhenta. De noitinha assistia filmes policiais na sala de televisão com halteres em punho exercitando os músculos dos braços fortes.
Nos finais de semana, quando a rotina era quebrada, ouvia tangos belíssimos. Carola logo apaixonou-se pelo gênero e, ainda criança arriscou uns passos com o vô. Ensaiavam escondidos e depois mostravam para toda a família.
Desde moço sofria de um considerável tremor nas mãos e com o passar dos anos teve o caso agravado. Em uma visita para apresentar o novo namorado, Carola ficou ressentida porque ele não sentou-se à mesa com os outros. A avó chamou-a de canto e confessou que ele tinha vergonha de comer na frente de estranhos, porque a mão balançava muito e a comida caía de volta no prato antes de chegar à boca. Ela engoliu um silêncio seco.
Deu-se que de uns tempos pra cá ele foi perdendo também a audição, além da visão que andava turva. Não renovaram sua carta de motorista, o que causou-lhe grande amargor. Sentia-se um tanto amputado sem poder ir e vir com seu carro. Agora era a mulher quem o levava para a praia nos feriados.
A primeira vez que Carola dirigiu não tinha mais do que nove anos. O avô colocou-a no colo para que pudesse comandar o volante. Aos doze começou a correr de kart no interior, onde ele fazia questão de levá-la todo final de semana. Com dezesseis ganhou seu primeiro carro que a mãe confiscou de imediato repreendendo o próprio pai que foi considerado irresponsável.
Quando em uma conversa informal a avó lhe disse que o vozinho andava chorão e questionando o porque da vida tão longa Carola sentiu o peito apertar. O nó na garganta gerou um par de lágrimas que escorreram doídas. Veio-lhe em mente um sonho recorrente que tinha desde a infância em que, justamente, recebe a notícia da morte do avô querido e acorda aos prantos.
Recolhida em seus pensamentos lembrou com saudades da sua primeira bicicleta e da paciência do avô para ensiná-la a pedalar. Aos sábados entravam sem permissão no estacionamento de um banco fechado para que ela ensaiasse suas primeiras pedaladas. Em pouco tempo e alguns tombos feios já andava sem ajuda nem rodinhas. Então passeavam os dois juntos explorando novos caminhos de terra que levavam até o sítio da família.
E nessa última vez que ligou para o avô e escutou seus lamentos teve certeza de que o tempo deles estava mesmo chegando ao fim. Pegou o carro e foi visitá-lo com duas bicicletas na caçamba. Arrastou o velho e passaram a tarde no parque pedalando e conversando sobre as expectativas da jovem e as memórias de seu grande ídolo e fã. Assim como pede uma tarde de outono, sem pressa nenhuma.