Saturday, February 22, 2014

Sopro


Foi assim que, sem nem esperar, um sopro de luz entrou pela porta da alma lhe trazendo um aconchego que já nem tinha mais lembrança (ou seria esperança?) de que pudesse existir. Um sopro doce, tão doce, que iluminou cada molécula de seus tantos corpos encarnados em um. Sopro que dançou além do tempo trazendo vida de volta para casa. Que alcançou raízes profundas sussurrando o amor esquecido, resgatando memórias de outra dimensão. Lembrou-se de si, de quem é realmente por traz de toda pele e de toda a carne. Despertou, em Graça, suas forças recolhidas há tanto. Encheu-se de gozo, de riso e de éter. Andou pelas nuvens que levam ao infinito. Vibrou em pura verdade, deliciando-se com o êxtase de apenas ser e (se) reconhecer.

Afinal, algo dentro de si não pode deixar de observar curioso:
- Quantos segundos leva para o amor transbordar de si e já não ser capaz de seguir com os bons modos?

- Não tem como deixar preso, respondeu um outro eu! Foge pelas frestas, escorrendo água nos veios. É feito criança brincando livre, sorrindo malícias para os limites. Para que servem os corpos que não para o encontro? Que se encontrem, que se amem, que se unam, que se inspirem... e inspirem.

Então era isso? Sempre foi isso? O mel do amor, que não se molda nem se prende, correndo livre pelos cantos de nós, fazendo bagunça para cá e para lá, rindo daqueles já zonzos de lhe correr atrás. E de tanto fluir, sopra seus sopros aqui e ali, abençoando aqueles que se renderam a coragem de viver... o que tiver para ser vivido.

Friday, February 10, 2012

Desabrochar


Se olhou no espelho com encantamento.

A mão deslizou lentamente pelo rosto.

Os dedos tocaram leves os olhos, correram a pele, encontraram os lábios.

Daslizaram na nuca, adentraram os fios do cabelo num emaranhado bom.

Sentiu cócegas.

Abriu um sorriso doce.

As mãos inteiras num vai-e-vem.

Despenteada.

Vibraram todas as células.

Despertaram todos os sentidos.

Os músculos se afrouxaram.

O prazer lhe correu a alma.

Sorriu num suspiro espontâneo.

As pernas dançaram no ar.

A mente calou-se pra ver.

A delicadeza fez-se presente.

Os poros se enchiam de amor.




Apaixonada...




Por ela mesma

Monday, January 17, 2011

Inocência




Sorriu um sorriso rasgado, daqueles que deixam os olhos miúdos e iluminam o rosto. Lá longe que estava ele, fazendo seus afazeres, cheio de contentamento. Foi inevitável ver o brilho que lhe rodeava. “Menino bonito”, pensou ela, sem segundas intenções, e seguiu seu caminho.
Foi que em poucos dias, estavam os dois, deitados na rede, e ele agora sorria pra ela. Sorria o tempo todo, por qualquer coisa boba. Fazia com que ela sorrisse também. Sorriam pra vida, com toda certeza, e isso, por si só, era o grande aprendizado da vez. Poder sorrir só porque a alegria era tanta que transbordava de tempos em tempos ao longo do dia.
Junto aos sorrisos estava a música, numa trilha sonora constante e variada. Vozes bonitas, assim como os sorrisos, que se revezavam dançando no ar, em escalas harmônicas com os solos que vinham de entre as árvores.
Entrou novamente em contato com sua pré-disposição pra ser índia, vivendo descalça na mata, balançando de lado pro outro na rede e tomando banho de rio. Podia viver assim sem data marcada pro fim. Dormir olhando pro céu, contando estrelas ao invés de carneirinhos. Sentindo cheiro de terra com chuva, tomando água com gosto da fonte.
Naqueles momentos de desaviso também aconteciam olhares, daqueles que olham no fundo da alma e revelam em silêncio o que sentem os seres. E de novo vinha o brilho, daqueles que irradiam e clareiam o que tiver por perto, de um jeito tal que faz os olhos enxergarem no escuro, e encontrarem cores que antes não tinham sequer se revelado.
Tinha vezes que os olhos se viam mesmo sem luz. Usavam das mãos para definir as formas e da boca para validar os gostos. Enxergavam os cheiros, os sons e as essências mais doces, daquelas que só podem ser extraídas depois de muito adentradas.
E a rede vinha, e depois ía. As vezes rápido, para que ela reclamasse, e outras devagar, para que as horas demorassem o máximo possível para passar. As mãos se juntavam, encostando duas vidas num mesmo momento, esquentando o corpo e deixando o coração calminho que só.
O sim se manifestava a todo instante, enquanto o mal nem dava conta de chegar por perto. Vinha a brisa, vinha a chuva, vinha o sol, tudo no tempo exato e com a duração perfeita. A mente seguia educada, sem fazer barulho algum, apenas observando o momento de cura. Enquanto balançava na rede, ela se curava do desamor e resgatava a inocência perdida em alguma esquina da vida. Ele crescia.

Thursday, March 05, 2009

Carência

Cortar o dedo tinha doído. Na verdade, no auge de seus 6 anos de idade, doía horrores. A pele rompida bruscamente pela faca que só estava em sua mão porque queria imitar a Clô... O sangue escorrendo pela mão impregnada com aroma de laranja-lima, aquela mesma que ela tentara descascar segundos antes, como fazia a Clô... Doía ainda mais o fato da mesma Clô não estar na cozinha no momento em que deu-se a tragédia. A pobre mulher, que trabalhava na casa desde que a menina tinha nascido, deixou a faca e um punhado de laranjas-limas em cima da pia para correr na sala e atender o telefone que tocava. Era a mãe da menina do outro da lado linha, avisando que chegaria novamente mais tarde do trabalho.
Quando a menina gritou na cozinha o coração de Clô apertou. O choro continuou alto e a moça tratou logo de dispensar a mãe pra acudir a filha. Achou melhor não fazer alardes e se despediu sem mencionar berro algum. Pensou lá com suas minhocas que não estava ao lado da menina quando sabe-se lá o que se sucedeu, então não levantaria lebres precipitadamente com a patroa.
Fone no gancho, adentrou a cozinha apreensiva. E lá estava a menina com a mão rubra de sangue escorrido e a cara vermelha de choro sentido de criança pequena.
- Mas o que é que você aprontou menina?
O choro saiu ainda mais alto e dolorido. Somou-se ao susto, ao corte, ao sangue, a dor e ao abandono, a culpa e o encabulamento. A culpa por ter mexido onde não devia e a vergonha pela falha de não ter conseguido cortar a tal da laranja-lima com a destreza de sua babá.
Clô pegou a menina no colo e correu para a pia. Abriu a torneira e enfiou a mão da pequena na água. Em troca ganhou urros histéricos, ainda mais escandalosos e sofridos. A água fria que inundava a carne quente despertava novamente na criança a dor do corte, que já começava a ficar amortecida.
- Menina levada!
- Buáaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
- Agora vai ficar aí chorando até secar!
Subiu as escadas da casa com a criança ainda no colo, abriu a porta do banheiro e tirou de dentro do armário debaixo da pia a caixa de medicamentos. Passa remédio, põe curativo, dá beijinho no corte.
O choro já ía mais baixo. Aumentava um pouco só quando os olhos das duas se cruzavam sem querer, como que se a garota cobrasse com o olhar a compaixão para com sua dor. Clô, então, olhava pra baixo e soltava um suspiro.
Desceu as escadas de volta e colocou a menina deitada no sofá. Ligou a tv, o dvd e colocou lá um desenho qualquer. Os olhos úmidos da criança, que miravam o dedo circundado de esparadrapo, mudavam o foco agora que a tela de lcd brilhava colorida. A mão sem curativo esfregava a cara molhada, enquanto o dedão da mão estrupiada encontrava abrigo na boca, que a chupava confortavelmente.
O nariz puxou forte a corisa para dentro. 1, 2, 3 vezes. Ainda deu uma engasgadinha ou outra nas lágrimas antes do personagem favorito começar a conversar com ela. Deitou a cabeça na almofada e pediu pelo cobertorzinho.
Dormiu.
Só acordou bem depois com o barulho da chave da mãe destrancando a fechadura. Abriu os olhos e logo se colocou sentada.
- Oi minha princesinha. Como é que voc... Meu deus, o que aconteceu com o seu dedinho?
Foi o suficiente para os olhos da pimpolha se encherem de água, e no segundo seguinte, quando a mãe correu a sentar ao seu lado, cair no choro novamente.
Ela apertava a menina contra o peito enquanto gritava pela presença - e consequentemente explicação - de Clô. Segurava o nó na garganta que queria chorar a dor da filha. Sentia muito não ter estado ao lado dela quando se machucou. Culpava-se pela ausência constante.
Tão logo a mulher explicou o ocorrido a mãe acusou-a de desatenta e irresponsável por não ter visto a menina pegar a faca. A oportunidade de tirar aquela culpa de dentro de si e passar adiante se fazia presente e ela não perderia a chance de transferir a responsabilidade só para ter seu coração mais tranquilo.
Diante da discussão, que desviara a atenção da mãe de seu sofrimento com o corte no dedo, a menina tratou de chorar mais alto. A mãe lhe cobriu de beijos no rosto, dizendo que logo o dodói passaria. Clô, que estava mais uma vez fazendo horas extras sem fim e não remuneradas, diante da acusão da patroa, calou-se com a cabeça baixa e voltou para a cozinha. Pegou suas coisas depressa, apagou a luz e antes de sair da casa avisou com a voz seca que não fizera o jantar.
A mãe, com a filha no colo, ligou a tv, o dvd, apertou o play, sorriu com o personagem preferido da menina e dormiu no sofá com a cria nos braços durante as poucas horas que conseguia ficar a seu lado.

Monday, May 12, 2008

Caleidoscópio


Sua vida em nada se assemelhava a uma linha reta. Sair de um lugar e chegar a outro pré-determinado estivera longe de ser um hábito. Parecia que em seu caminho sempre havia curvas, atalhos e obstáculos demais que a impediam de concluir um trajeto como planejara inicialmente. Talvez lhe faltasse firmeza para seguir adiante, talvez um costume antigo de se deixar levar, e quem sabe ainda, uma curiosidade latente que lhe impedia de recusar qualquer que fosse a oportunidade ofertada. E assim girava em círculos, hora olhando para o chão concentrada em seus pensamentos, noutras observando o mundo tentando adivinhar o que ía na mente alheia.
Sua habilidade maior – fruto de um senso apurado de direção – era voltar ao ponto de partida. Bastava dar errado que ela retornava para o lugar de onde tinha saído e tentava novos rumos. As vezes, até quando achava que tinha chegado a um local seguro, revisitava o marco inicial de seu trajeto para tentar reafirmar para si própria que estava mesmo no endereço certo. Vivia de certezas com prazo de validade e duvidava das próprias escolhas. Provavelmente duvidava dela mesma e por isso precisava ter o tempo todo alguém por perto que lhe servisse como referencial.
Foi na primeira vez em que decidiu que tentaria caminhar sozinha, só para variar e experimentar coisas novas, que surpreendeu-se ao se deparar com um inédito e instigante triângulo. Apaixonou-se por um alguém que já tinha o seu bem e viu-se presa e empacada nesse capítulo de sua história. O formato novo lhe confundiu as idéias que não estavam habituadas aos limites naturalmente impostos pelos ângulos. Beirou a loucura e viu-se maluca com a restrição da nova condição. Perdeu seu referencial e não conseguiu voltar a largada seguindo a esmo.
Os novos passos surgiram trêmulos. Caminhava sem direção ou conhecimento do porque ia em frente. A cada nova investida sentia que deixava para trás a ingenuidade de quem cria em finais felizes. Seu andar a levava para o oposto de onde viera e com freqüência desconhecia seu reflexo no espelho. Suas poucas certezas desmoronavam com lágrimas quentes em noites mal-dormidas. A antiga falta de segurança tornara-se uma gravíssima falta de identidade que a consumiam diariamente em um processo degradante de auto flagelamento. Ter dentro de seu coração tanto amor e ser impedida de consumi-lo lhe causava uma frustração corrosiva. Um desses sentimentos agudos que vêm acompanhados de dor física no peito, frio na barriga e nó na garganta. Um desses sentimentos avassaladores que entorpecem e viciam.
O processo de desintoxição deu-se lento, devagar, quase parando. Precisou de toda uma eternidade para recolher seus cacos e criar com eles novo molde. Reconstituiu-se a seu bel prazer. Mudou o cabelo, a forma de se vestir e a entonação da voz. Arrumou para ela uma nova personagem para ver se assim também ganhava um novo enredo.
Na segunda vez em que decidiu que tentaria caminhar sozinha, em um apelo consciente de quem buscava se conhecer e se aceitar, percebeu que os triângulos não haviam saído de sua vida, e retornavam o tempo todo de maneira cíclica. Mudavam nomes e rostos. Permaneciam a incompreensão e a desilusão que a essas alturas já ganhavam ares de descrença plena no amor entre dois. Seu velho costume de aceitar tudo o que a vida lhe trazia sem reagir começava a lhe causar embaraço. Sentia-se cada dia mais impotente e frustrada.
Quando decidiu reagir e negociar quais eram suas reais vontades notou sua falta de discernimento para saber como prosseguir. Deu o primeiro passo aconselhada por pessoas queridas e pouco depois viu-se novamente na corda bamba sem conseguir manter-se equilibrada. Quis correr rápido para fora de seu próprio corpo. Quis fugir para qualquer outra dimensão onde seus pensamentos a deixassem em paz. Desejou uma imediata imersão no silêncio profundo. Mas teve que contentar-se com a realidade esfumaçada sem manual de instruções ou orientações escritas. E clamou para que seu coração gritasse bem alto o que ela, desorientada, deveria fazer para andar nos trilhos.
A verdade é que quando olhava ao redor tinha a nítida sensação que no mundo dos outros os trilhos iam sempre retos. Então, quando olhava pra frente e via tanta opção de caminho, naturalmente se sentia confusa. E cansada de seguir sem eira nem beira tomou o comum pertencente a maioria como regra primeira para solucionar os seus problemas.
Foi quando rogou por ajuda que entrou – por vontade de suas pernas que a carregavam no colo - no vagão mais brilhante do trem que passava na sua frente naquele minuto. Entrou cabisbaixa e sentou-se quieta. Exausta com seus pesares caiu em sono profundo e deixou a alma ser anestesiada. Quando acordou o Sol brilhava forte e esquentava seu rosto pálido. Os olhos doíam com a intensidade da luz e um sorriso brotou tímido na face que outrora demonstrava temor. Não sentia mais as pontadas no peito e tão pouco sabia para onde o trem a havia levado.
Desceu no ponto final julgando-se incapaz de se decidir por alguma outra parada. Pisou o pé direito e depois o esquerdo na grama verde com um pouco de lama. Topou ali adiante com margaridas rasteiras e respirou um ar novo com cheiro de recomeço. Em linha reta chegou ao rio calmo e gelado. Tirou a roupa cuidadosa com a possível presença de olhares estranhos e entrou de mansinho até molhar cada pedaço de si. Ficou lá quieta deixando a água molhar e levar com ela as mágoas que trouxe no bolso. Notou que o aguaceiro seguia sem pestanejar o rumo que o rio lhe impunha. Propõe-se a mesma obediência. Desistiu de pegar orientações e tampouco agoniou-se por não ter em suas mãos um mapa que indicavam destinos. Naquele momento percebeu que tudo estava em ordem do jeito que estava. Para ela não cabiam planos, precisava somente fluir.

Wednesday, July 04, 2007

Medo


Ri,


Quando meus olhos se abriram essa manhã – quase tarde – pensei que venho eu devendo a ti, há algum tempo, uma resposta. Não escrevi ainda porque andei calada. A resposta veio agora, aqui debaixo das cobertas, de calcinha, camiseta e remela nos olhos. Perguntou-me como anda a minha vida nesse tempo em que ficamos sem nos ver ou falar, e confesso que ando aflita com o modo como vem batendo meu coração.
Ele que sempre teve um comportamento exemplar, deu para nesses tempos, bater estranho. Parece-me que tem andado com más companhias. Uns e outros aí que se dizem modernos, independentes, que fazem o que bem entendem e não gostam de dar satisfações... Não entendo! Fora sempre tão carente.
Outro dia notei quando saíram todos juntos. Rindo alto, falando besteiras. Há quem diga que iam muito seguros de si, mas eu duvido. Em turma é mais fácil acreditar-se pleno e feliz. Mas a pergunta que faço para esse bando de corações que se dizem tão livres é como é que batem quando estão sozinhos em frente ao espelho.
Pois o meu coração está rebelde. Não me escuta nem tão pouco me dá atenção. Deu pra querer cair na noite todo dia e voltar só quando o Sol já raiou. Falou-me sem rodeios que eu era careta e não entendia nada dos novos tempos. Que compromisso sério era démodé. O queeee?
Também deu para ficar olhando para todos os lados e cantos procurando um outro qualquer que possa servi-lhe uma ou duas noites. Disse que não quer ter ninguém no seu pé, cobrando-lhe horários e explicações. Quer ser livre e estar só. Emendou até, com voz segura, que não se apaixonaria tão cedo. Assim, com essa petulância adolescente de quem acha que sabe e pode tudo.
Não é que ele, todo cheio de si, trombou com um outro coração, já conhecido seu, em uma dessas noites libertinas! E como eu vinha lhe avisando sem que ele me desse ouvidos, sentiu um calafrio e um suadouro logo que bateu o olho no coração conhecido. Sim, porque esse daí era há muito, um coração com potencial para virar amor seu. Tentou fugir para o banheiro inutilmente. Seguido que foi rendeu-se ao outro.
Na manhã seguinte contou menos de vinte e correu para casa. Disfarçou para o espelho, não pronunciou uma palavra ao me ver e recolheu-se no quarto. Pouco depois o telefone tocou e ele novamente rendeu-se em um novo encontro. Seguiram assim nas semanas seguintes. Começou até a entrar no compasso certo trazendo-me um alívio que pouco durou.
Dias depois ficou agitado e palpitante. Andava inquieto por aí ensaiando dizeres que nunca eram ditos a ninguém. Foi guardando para si suas palavras e em uma das bebedeiras corriqueiras confessou que não procuraria mais o outro coração. Porque raios? Vinha se envolvendo demais, via-se prestes a amar, e com isso iria se perder de si próprio. Era melhor sair de cena, decretou. Como se não houvesse nenhuma outra alternativa possível, pensei.
Assim decidido não deu explicações maiores e deixou de telefonar. Fez do outro coração uma lembrança vaga em seu dia a dia. Preencheu o espaço vazio ao lado dos amigos como se nada tivesse acontecido. Arquivou o assunto e seguiu adiante batendo em um descompasso que vem me enlouquecendo. Ele que outrora era fluido agora tornara-se líquido e vinha escorrendo pelas frestas perdendo-se da sua essência maior: a capacidade de amar.
Essa noite em meus sonhos ele fazia um tum-tum-tum gostoso deitado em seu colo. Estávamos jogados os dois na areia em uma das tantas viagens passadas. Despertei saudosa e querendo saber se o seu coração, depois que nos separamos, também tomou-se de medo e fechou-se para a lei natural dos encontros. Ou, se mesmo machucado, respirou fundo e abriu os braços aceitando a vida.
Espero que esteja bem e que possamos nos ver em breve.


Beijos


Wednesday, June 27, 2007

Água




Foi assim que aconteceu, sem mais nem menos, que ela sentou e chorou. Começou num chororê que nem parecia que ia vingar. O rosto foi esquentando, queimando e ganhando um rubor inédito. Em pouco tempo já se fazia um chororô a vazar-lhe pelos olhos sem controle. Seguiram soluços de tremer o peito e o resto do corpo. A água extravasou-se também pelo nariz, que a essas alturas escorria ininterrupta.
Não digo que nunca tinha desabado em prantos, mas não se lembra quando nem o porque. E para ser mais exata talvez – com altas probabilidades – nunca tivesse mesmo chorado até secar. Porque agora estava prestes a tal. Encolhida em seu buá sentia que derramava aos pouco toda a água que tinha dentro de si. Esvaziava a alma e chegava perto da desidratação também.
Quando bebê de colo não deu trabalho. Dormiu no horário, comeu direito, abdicou das cólicas. Os dentes nascendo trouxeram-lhe incomodo, mas um tantinho de nada só. Suportável em todo o tempo. Foi pra escola no primeiro dia de aula sem apresentar resistência. Arrebentou-se no chão uma porção de vezes até consegui equilibrar-se em cima dos patins, e tirando uma lágriminha tímida que escorreu no canto do olho esquerdo, não achou que a dor seria empecilho para atingir a perfeição na prática do esporte.
Menstruou sem dramas e a TPM nunca lhe foi apresentada. Apaixonou-se loucamente por um menino do inglês que preferiu namorar sua melhor amiga. Ficou feliz pelo amor do casal. Partiu para o intercâmbio na Bélgica com o coração apertado, é verdade. Entretanto, o nó na garganta não veio e na hora do tchau no aeroporto abriu um largo sorriso. Os longos dias de estudo de cursinho cansaram-lhe o corpo e a mente, mas tudo feito por um ideal maior, sem stress algum. Subitamente perdeu a mãe e teve certeza debruçada no caixão que chegara o momento dela partir. Quando o marido - agora ex - pediu o divórcio, perdeu o chão por duas ou três semanas. Não sabia direito de que lado da cama dormir, nem tampouco cozinhar porções individuais. Desejou-lhe sorte na nova vida.
As amigas já desconfiavam há tempos desse seu otimismo desmedido. Outra, budista, acreditava estar em frente de um ser humano iluminado, livre de apegos. Aconselharam-na visitar uma psicóloga, que argumentou que a moça sofria de um tal complexo de poliana. O novo romance que engatou foi por terra da noite para o dia com justificativa do moço que dizia ser ela de uma frieza cortante.
Quando acordou naquele dia, o dia havia nascido como todos os outros. Não sentiu calafrios, palpitações, nem pressentiu coisa alguma. Estava atrasada, mas isso era parte da rotina. Pegou trânsito para chegar ao trabalho, o que também era de costume. Almoçou no restaurante de sempre, deu risada com os e-mails que recebeu dos amigos, leu o jornal online, lixou a unha em um momento de relax e voltou ouvindo música no carro. Chegou em casa, falou com o cachorro, pegou as contas do chão, jogou a bolsa no sofá, colocou uma sopa para esquentar no microondas. No quarto tirou a roupa e seguiu para um banho rápido. Prendeu o cabelo para não molhar, usou um sabonete novo, colocou o roupão e foi jantar.
A sopa estava salgada e lembrou-se de pedir a empregada para maneirar no tempero da comida. Ligou o rádio da cozinha e a boa música incentivou-a a aumentar o volume. Besuntou a cumbuca de azeite e pensou o que tinha de sobremesa. Deu-se conta que precisava ir ao supermercado quando viu o armário vazio. Tomou um copo de água fresca. Colocou ração para o amigo cão. Voltou para o quarto e sentou-se na cama nova que chegara naquele dia. Testou as molas do colchão novo forçando-as para baixo. A cama jogou-a para cima mostrando que era mesmo de qualidade. Ficou ali brincando de subir e descer com as molas do colchão por um tempo, lembrando da infância. Depois cansou.
Sentou de novo recostada nos travesseiros macios. E então, sem mais nem menos as coisas foram acontecendo. Veio vindo. Primeiro uma cosquinha no estômago. Doeu um pouco mais e subiu pro peito. Quando deu-se conta estava com a garganta ardida, quase sufocando. Os olhos embaçaram molhados e o horizonte ficou tremido. Rolou a primeira gota salgada e depois disso foram brotando milhares delas, jorrando lágrimas sem pausa para descanso. Ficou ali sentada, sem conseguir se mexer, chorando compulsivamente. Perdeu o controle. Chorou, e chorou, e chorou sem conseguir parar. Foram dias intermináveis chorando sentada. Até encolher, enrurrgar e dormir tranqüila sem mais acordar.