Wednesday, January 24, 2007

Silêncio


Quando criança Liló brincava sozinha quase todos os dias. Filha única de pais separados que trabalhavam fora de casa, foi criada pela avó. A rotina de acordar cedo, tomar nescau e assistir desenhos na televisão, era quebrada vez ou outra, por suas brincadeiras secretas. Ela tinha para si que nunca estava totalmente só. Moravam dentro de sua cabeça um punhado de amiguinhos sempre dispostos a se divertir a valer.
Quando decidiam por fim o que fazer, iam todos dar uma volta de bicicleta no quarteirão. A avó da menina não apresentava resistência alguma, contanto que a menina se mantivesse na calçada. Na bike começou a desenvolver suas primeiras habilidades profissionais. Trabalhava como corretora de imóveis. Seus amigos imaginários interpretavam os clientes que a consultavam em busca da casa de seus sonhos. A menina apontava as diversas opções disponíveis no bairro residencial em que morava. Os negócios eram fechados ali mesmo, na rua. Sem essa burocracia toda de contratos, fiadores ou dinheiro. Gostou, levou e pronto! Mesmo porque nada a impediria de vender ou alugar o imóvel novamente, em um outro passeio ciclístico.
Em dias de chuva a brincadeira era com os copos e taças da cristaleira da vózinha. Ela era a professora, e eles por sua vez, os alunos. Os copos de uísque, por exemplo, eram sempre encarados como meninos, enquanto as taças de champagne, mais esbeltas, representavam as meninas. Classificados os sexos ou ela perdia horas em busca da disposição perfeita dos “alunos” em uma suposta sala de aula, ou então, definia os pares para a inventada festa junina da escola. Sempre prezando um senso estético de acordo com o tipo físico de cada um, além do bom comportamento de cada copo durante o ano letivo.
Os produtos de beleza do banheiro também estavam sujeitos a essa brincadeira. Acontecia geralmente quando ela estava com preguiça de tomar banho. Trancava a porta, ligava o chuveiro, e ficava por horas organizando a “criançada”.
No banheiro acabou dando seu primeiro beijo. Na parede, diga-se de passagem. Com a puberdade a caminho, passou a freqüentar festas badaladíssimas dentro do cômodo de sua casa. Começou a fumar lá dentro, inclusive. Pegava escondido um cigarro da vó para levar para o evento.
Nessa época já estendia seus passeios de bicicleta por todo o bairro e arredores, inclusive para ir ao condomínio fechado em que as amigas moravam. Lá a fantasia começava a tornar-se realidade, e vira e mexe alguém realmente organizava uma festinha bacana. E também com essa freqüência o pessoal inventava um jeito de ir dar umas beijocas na quadra, que ficava atrás das casas em um local com pouca iluminação.
Uma vez um menino que morava lá, pediu para as amigas que levassem Liló em frente a casa 7 para que ele declarasse sua paixão. A menina, desacostumada a acontecimentos desse tipo na vida real, entrou em pânico e foi embora sem dar tchau para ninguém.
Já na adolescência começou a cultivar gnomos, duendes e outros hábitos místicos. Tinha em seu quarto uma estante cheia de velas, e pedras, e incensos. Agora passava as tardes conversando com os novos amigos gnomos. Quando procurava alguma coisa em casa e não encontrava, atribuía a culpa à personalidade brincalhona dos pequenos. Ficava furiosa. Brigava com eles em alto e bom som.
As confissões mais íntimas e outras histórias malucas iam sendo armazenadas em uma porção de caderninhos que estavam sempre à mão. A paquera do inglês, as brigas dos pais, as fofocas com as amigas. Tudo registrado com cabíveis ênfases para o que supunha mais interessante. A realidade transformada de acordo com suas preferências misturadas com boas doses de suposições e fantasias. Com o hábito das escrivinhações foi perdendo pouco a pouco o critério entre o registro do fato em si e o que era acessório, fruto de sua imaginação.
Com a faculdade terminada e o trabalho ocupando grande parte do seu tempo, abandonou as anotações. Os gnomos estavam encaixotados há anos, desde quando mudou-se para um apartamento pequeno e não encontrou mais espaço ou razão para expô-los.
As diárias doze horas trancafiada no escritório, trouxeram de presente o maior de seus tormentos: a paixão pelo chefe casado! Foram inúmeras as noites que ela dormiu com ele em pensamento. Viajavam sempre juntos, almoçavam e tomavam um vinho a noitinha com muita constância, sem que ele sequer imaginasse estar presente no recinto. Passou a conversar sozinha na rua sem pudores. Imaginava diálogos com o moço a toda hora. As conversas variavam entre banalidades cotidianas, o andamento da separação com a esposa, além de tórridas declarações ao pé do ouvido.
Em um dado momento resolveu comprar uma cama de casal, para que ficassem mais a vontade. Daí por diante as aquisições eram sempre em dobro. Comida para dois, duas escovas de dentes. Até um chinelo para ele chegou a colocar no pé da cama.
Um dia convidou a mãe para conhecer o namorido. Marcou um jantar. Preparou um risoto, abriu um vinho caro. Colocou três lugares na mesa. Quando o interfone tocou atendeu ansiosa. Ainda deu tempo de arrumar a gravata de seu amor antes de abrir a porta.
- Mãe, esse é o Gilberto. Gilberto, essa é minha mãe.
A mãe deu risada e ainda perguntou que brincadeira era aquela. Liló respondeu que falava sério. Eles estavam morando juntos há algum tempo. Gilberto finalmente tinha se separado da ex-mulher e agora morava com ela. A mãe ainda observou em volta. Existiam mesmo vestígios de presença masculina pela casa.
- Filha, não há ninguém aqui.
- Como assim mãe?! O que o Gilberto vai pensar da senhora?
Discutiram muito até que Liló, aos prantos, pediu para que a mãe fosse embora. Correu para o quarto e pegou a caixa de fotos para rever todo o romance. Ele estava lá, presente, em todas elas. Abriu o armário e as roupas de Gilberto estavam todas penduradas. Correu de novo para a sala e ele a esperava no sofá com um leve sorriso nos lábios.
- Tudo bem, Liló. Já passou. Falou ele baixinho para ela.
A moça então trancou a porta de casa, apagou a luz, acendeu as velas que ficavam em cima do aparador e fez amor em silêncio até adormecer.