Wednesday, July 04, 2007

Medo


Ri,


Quando meus olhos se abriram essa manhã – quase tarde – pensei que venho eu devendo a ti, há algum tempo, uma resposta. Não escrevi ainda porque andei calada. A resposta veio agora, aqui debaixo das cobertas, de calcinha, camiseta e remela nos olhos. Perguntou-me como anda a minha vida nesse tempo em que ficamos sem nos ver ou falar, e confesso que ando aflita com o modo como vem batendo meu coração.
Ele que sempre teve um comportamento exemplar, deu para nesses tempos, bater estranho. Parece-me que tem andado com más companhias. Uns e outros aí que se dizem modernos, independentes, que fazem o que bem entendem e não gostam de dar satisfações... Não entendo! Fora sempre tão carente.
Outro dia notei quando saíram todos juntos. Rindo alto, falando besteiras. Há quem diga que iam muito seguros de si, mas eu duvido. Em turma é mais fácil acreditar-se pleno e feliz. Mas a pergunta que faço para esse bando de corações que se dizem tão livres é como é que batem quando estão sozinhos em frente ao espelho.
Pois o meu coração está rebelde. Não me escuta nem tão pouco me dá atenção. Deu pra querer cair na noite todo dia e voltar só quando o Sol já raiou. Falou-me sem rodeios que eu era careta e não entendia nada dos novos tempos. Que compromisso sério era démodé. O queeee?
Também deu para ficar olhando para todos os lados e cantos procurando um outro qualquer que possa servi-lhe uma ou duas noites. Disse que não quer ter ninguém no seu pé, cobrando-lhe horários e explicações. Quer ser livre e estar só. Emendou até, com voz segura, que não se apaixonaria tão cedo. Assim, com essa petulância adolescente de quem acha que sabe e pode tudo.
Não é que ele, todo cheio de si, trombou com um outro coração, já conhecido seu, em uma dessas noites libertinas! E como eu vinha lhe avisando sem que ele me desse ouvidos, sentiu um calafrio e um suadouro logo que bateu o olho no coração conhecido. Sim, porque esse daí era há muito, um coração com potencial para virar amor seu. Tentou fugir para o banheiro inutilmente. Seguido que foi rendeu-se ao outro.
Na manhã seguinte contou menos de vinte e correu para casa. Disfarçou para o espelho, não pronunciou uma palavra ao me ver e recolheu-se no quarto. Pouco depois o telefone tocou e ele novamente rendeu-se em um novo encontro. Seguiram assim nas semanas seguintes. Começou até a entrar no compasso certo trazendo-me um alívio que pouco durou.
Dias depois ficou agitado e palpitante. Andava inquieto por aí ensaiando dizeres que nunca eram ditos a ninguém. Foi guardando para si suas palavras e em uma das bebedeiras corriqueiras confessou que não procuraria mais o outro coração. Porque raios? Vinha se envolvendo demais, via-se prestes a amar, e com isso iria se perder de si próprio. Era melhor sair de cena, decretou. Como se não houvesse nenhuma outra alternativa possível, pensei.
Assim decidido não deu explicações maiores e deixou de telefonar. Fez do outro coração uma lembrança vaga em seu dia a dia. Preencheu o espaço vazio ao lado dos amigos como se nada tivesse acontecido. Arquivou o assunto e seguiu adiante batendo em um descompasso que vem me enlouquecendo. Ele que outrora era fluido agora tornara-se líquido e vinha escorrendo pelas frestas perdendo-se da sua essência maior: a capacidade de amar.
Essa noite em meus sonhos ele fazia um tum-tum-tum gostoso deitado em seu colo. Estávamos jogados os dois na areia em uma das tantas viagens passadas. Despertei saudosa e querendo saber se o seu coração, depois que nos separamos, também tomou-se de medo e fechou-se para a lei natural dos encontros. Ou, se mesmo machucado, respirou fundo e abriu os braços aceitando a vida.
Espero que esteja bem e que possamos nos ver em breve.


Beijos


Wednesday, June 27, 2007

Água




Foi assim que aconteceu, sem mais nem menos, que ela sentou e chorou. Começou num chororê que nem parecia que ia vingar. O rosto foi esquentando, queimando e ganhando um rubor inédito. Em pouco tempo já se fazia um chororô a vazar-lhe pelos olhos sem controle. Seguiram soluços de tremer o peito e o resto do corpo. A água extravasou-se também pelo nariz, que a essas alturas escorria ininterrupta.
Não digo que nunca tinha desabado em prantos, mas não se lembra quando nem o porque. E para ser mais exata talvez – com altas probabilidades – nunca tivesse mesmo chorado até secar. Porque agora estava prestes a tal. Encolhida em seu buá sentia que derramava aos pouco toda a água que tinha dentro de si. Esvaziava a alma e chegava perto da desidratação também.
Quando bebê de colo não deu trabalho. Dormiu no horário, comeu direito, abdicou das cólicas. Os dentes nascendo trouxeram-lhe incomodo, mas um tantinho de nada só. Suportável em todo o tempo. Foi pra escola no primeiro dia de aula sem apresentar resistência. Arrebentou-se no chão uma porção de vezes até consegui equilibrar-se em cima dos patins, e tirando uma lágriminha tímida que escorreu no canto do olho esquerdo, não achou que a dor seria empecilho para atingir a perfeição na prática do esporte.
Menstruou sem dramas e a TPM nunca lhe foi apresentada. Apaixonou-se loucamente por um menino do inglês que preferiu namorar sua melhor amiga. Ficou feliz pelo amor do casal. Partiu para o intercâmbio na Bélgica com o coração apertado, é verdade. Entretanto, o nó na garganta não veio e na hora do tchau no aeroporto abriu um largo sorriso. Os longos dias de estudo de cursinho cansaram-lhe o corpo e a mente, mas tudo feito por um ideal maior, sem stress algum. Subitamente perdeu a mãe e teve certeza debruçada no caixão que chegara o momento dela partir. Quando o marido - agora ex - pediu o divórcio, perdeu o chão por duas ou três semanas. Não sabia direito de que lado da cama dormir, nem tampouco cozinhar porções individuais. Desejou-lhe sorte na nova vida.
As amigas já desconfiavam há tempos desse seu otimismo desmedido. Outra, budista, acreditava estar em frente de um ser humano iluminado, livre de apegos. Aconselharam-na visitar uma psicóloga, que argumentou que a moça sofria de um tal complexo de poliana. O novo romance que engatou foi por terra da noite para o dia com justificativa do moço que dizia ser ela de uma frieza cortante.
Quando acordou naquele dia, o dia havia nascido como todos os outros. Não sentiu calafrios, palpitações, nem pressentiu coisa alguma. Estava atrasada, mas isso era parte da rotina. Pegou trânsito para chegar ao trabalho, o que também era de costume. Almoçou no restaurante de sempre, deu risada com os e-mails que recebeu dos amigos, leu o jornal online, lixou a unha em um momento de relax e voltou ouvindo música no carro. Chegou em casa, falou com o cachorro, pegou as contas do chão, jogou a bolsa no sofá, colocou uma sopa para esquentar no microondas. No quarto tirou a roupa e seguiu para um banho rápido. Prendeu o cabelo para não molhar, usou um sabonete novo, colocou o roupão e foi jantar.
A sopa estava salgada e lembrou-se de pedir a empregada para maneirar no tempero da comida. Ligou o rádio da cozinha e a boa música incentivou-a a aumentar o volume. Besuntou a cumbuca de azeite e pensou o que tinha de sobremesa. Deu-se conta que precisava ir ao supermercado quando viu o armário vazio. Tomou um copo de água fresca. Colocou ração para o amigo cão. Voltou para o quarto e sentou-se na cama nova que chegara naquele dia. Testou as molas do colchão novo forçando-as para baixo. A cama jogou-a para cima mostrando que era mesmo de qualidade. Ficou ali brincando de subir e descer com as molas do colchão por um tempo, lembrando da infância. Depois cansou.
Sentou de novo recostada nos travesseiros macios. E então, sem mais nem menos as coisas foram acontecendo. Veio vindo. Primeiro uma cosquinha no estômago. Doeu um pouco mais e subiu pro peito. Quando deu-se conta estava com a garganta ardida, quase sufocando. Os olhos embaçaram molhados e o horizonte ficou tremido. Rolou a primeira gota salgada e depois disso foram brotando milhares delas, jorrando lágrimas sem pausa para descanso. Ficou ali sentada, sem conseguir se mexer, chorando compulsivamente. Perdeu o controle. Chorou, e chorou, e chorou sem conseguir parar. Foram dias intermináveis chorando sentada. Até encolher, enrurrgar e dormir tranqüila sem mais acordar.

Monday, June 18, 2007

Ruído


Foram perto de quarenta anos dele vividos no mesmíssimo endereço. A casa grande foi herança de algumas gerações da família e já acumulava mais de um século de construção. Eduardo nasceu ali quando era então endereço da avó. Criou-se lá também durante o casamento naufragado dos pais, motivo de boataria no bairro no final de década de 60. Avesso a mudanças, permaneceu na casa após o matrimônio, e em momento algum pensou em sair da residência quando nasceram os dois filhos.
A casa ficava em uma curva de uma rua extensa de duas mãos. Quando criança jogou bola, treinou boxe e desceu todas as ruelas paralelas a sua em cima de um carrinho de rolimã. Participou de campeonatos de bolinha de gude e botão. Empinou pipa, trocou figurinha e meteu e tomou uns tabefes de alguns outros moleques de sua idade. Mais velho namorou no portão – e nos quintais de casas vazias – e tirou racha de carro à noite com os amigos.
Apaixonou-se ainda menino pelo piano de cauda contemporâneo a inauguração da casa. Postado na sala por muitas décadas ganhou um cômodo exclusivo quando Eduardo já moço, assumiu-se músico de profissão. Dos quatros amplos e bem arejados quartos da casa, Eduardo havia escolhido o da frente para acomodar seu piano e toda a parafernalha musical. Isso porque, como bom músico brasileiro, sustentava-se dando aulas em casa para alunos particulares. Assim, o estúdio caseiro montado no primeiro quarto evitava que os estranhos adentrassem seu lar nos dias em que lecionava.
Os anos confinados em conservatórios de música trouxeram-lhe um estranho terror por barulho que intensificou-se com o avançar da idade. Junto a crescente aversão à sons caóticos viu também seu bairro prosperar. Aqui e ali abriram comércios variados e o tráfego de carros tornou-se notável. Já quando o primeiro filho nasceu o excesso de automóveis e transeuntes impossibilitava a partida de futebol de final de tarde na rua.
Foi justamente na época em que o segundo rebanho veio ao mundo que Eduardo deu-se conta que sua rua virara rota de ônibus municipais. Com o tempo e costume dos itinerários, os motoristas de transporte público perceberam o que ele e seus amigos notaram anos antes: a rua longa e reta permitia pisar no acelerador sem dó alguma. A única curva, em frente a sua casa, era também o único ponto do trajeto que pedia uma leve redução, muitas vezes seguida de pneus cantando.
O trânsito em pouco tempo instaurou-se por ali, e as freadas vinham acompanhadas de buzinas, motores, xingamentos e esporádicas batidas. A pasmaceira de outrora ganhara ares de orquestra urbana que só dava trégua nos finais de semana.
Eduardo ainda resistiu a qualquer tipo de providência, e só quase beirando a loucura decidiu que era tempo de mudar. Encaixotou tudo e arrastou por 300 metros até o quarto dos fundos que armazenava tralhas e bugigangas diversas. Construiu um corredor paralelo que ligava o portão de entrada a improvisada sala de aula, e respirou relaxado com o novo santuário silencioso.
Pouco depois a casa vizinha e germinada deixou de abrigar uma família para dar lugar a um restaurante por quilo. Já às seis da manhã as cozinheiras cantarolavam em alto e bom som um repertório de gosto duvidoso. Perto da hora do almoço era a vez da proprietária começar a gritar com os funcionários para que agilizassem os preparos antes da chegada dos clientes.
Eduardo retrucou. Bateu no restaurante mais de uma vez pedindo por silêncio e respeito. Depois chamou a polícia em vão outro tanto de ocasiões, e por fim começou a jogar baldes de água fria por cima do muro tentando acertar as cantoras de ocasião.
Infeliz em todas as suas tentativas gastou fortunas com portas e janelas anti-ruído e forrações de cortiça para abafar o som. O investimento foi bem-sucedido e talvez tudo corresse bem não fosse o vazamento da calha que em pouco tempo tornou o quarto inabitável para aparelhos eletrônicos e musicais em geral. Mudou-se novamente.
Dessa vez foram menos de 200 metros, para o quarto do meio, ao lado do jardim de inverno. Era sem dúvidas o mais agradável e onde o casal dormira até então. Os filhos, já adolescentes, passaram a habitar juntos o quarto da frente e eles – o casal - foram para um outro menor, enquanto o dos fundos rendeu-se ao mofo.
Meses depois, de uma única vez, as duas casas da frente da dele viraram da noite pro dia uma danceteria e um bar com música ao vivo. Estava fadado ao barulho ensurdecedor enquanto vivesse naquela casa, concluiu por fim. No dia seguinte comprou –como quem compra um novo par de sapatos - um apartamento no último andar em um bairro afastado daquele.
Entrou no novo lar com o pé direito e deixou escapar um suspiro de alívio, como que consciente de que havia comprado também sua paz. Levou dois dias para descobrir que seu novo endereço era rota de aviões. Chorou como criança ao ver cada uma das janelinhas do Fox 100 da Tam sobrevoando o prédio.
Meses depois padeceu em um ataque fulminante do coração. Enfim, o silêncio! Foi enterrado no cemitério central, na esquina das duas avenidas mais movimentadas da cidade tomadas por camelôs de artigos variados. À noite, quando já no túmulo esperava o sossego, as luzes de néon iluminaram a casa de shows e o karaokê japonês da travessa lateral.

Monday, June 04, 2007

Borboleta


Foi outro dia que percebeu que não estava curada como vinha achando de uns tempos pra cá. Dentro de si ainda havia vestígios de seu sobrenome. Renegou-o por toda sua trajetória em vida e só agora - sentindo-se livre do peso da hereditariedade – cogitava assiná-lo novamente não fosse aquele ato falho que a deixou desconcertada.
Sem mais delongas, vamos aos fatos ocorridos. Melhor que eu pronuncie o derradeiro que foi o responsável pelo desencadeamento da verdade. Ela não teria como se livrar do sangue que corria dentro de si. Querendo isso ou não. Teria que encarar-se assim do jeito que foi sendo moldada em seus vinte e médios anos.
Deve o leitor agora estar achando que coisa grave sucedeu-se já que venho me repetindo nessa mesma enunciação há dois parágrafos – e agora três. Aviso desde já que para alguém que absorve passivo essa narrativa talvez o caso não tome proporção alguma. Não abale e nem cause rebuliços internos, mas também deixo claro que para ela representou um deslize relevante. Por outro lado – rogo eu – que venha a ser um primeiro gesto de reconciliação de sua figura representativa com sua essência crua.
Foi assim, sentada a mesa de outrem que lhe preparava um suco de laranja, que viu um bom pedaço de queijo prato embalado em um plástico vermelho – como os devorados ao longo de toda a infância. O queijo embrulhado – ainda que com a embalagem já aberta – estava sobre a tal mesa, no canto. Ela colocou-o em primeira instância em cima de um pratinho.
- Puxa, você não faz idéia do quanto gosto desse queijo! Verbalizou.
Sua segunda ação foi imediatamente abrir o pacotinho e cortar um naco para si, que comeu assim, assim, sem mais nada, nem pão, nem nada.
- Nossa! O gosto é ainda o mesmo gosto. Com a boca salivando.
Depois mais uns três ou quatro pedacinhos. Talvez nem quisesse ter comido essa última fatia, mas a intenção ao cortá-la era outra. Ao tirar o queijo do plástico vermelho percebeu-o cortado de qualquer jeito. Seu dono havia arrancado-lhe pedaços sem nenhum tipo de cuidado ou simetria. Era notável que o cortava sem hesitação ou ritual. Tratava de enfiar-lhe a faca enquanto seus pensamentos corriam soltos para qualquer outro lado. Muito possivelmente jamais tenha se dado ao trabalho de olhar o queijo enquanto deslizava o corte – cego por sinal – de uma faca qualquer em sua superfície.
Definitivamente o queijo não perdeu seu sabor por conta disso como ela mesmo suspirou ao degustá-lo. Em todo caso, trabalhou atenta no retirar de cada fatia para moldá-lo reto, levemente na diagonal – sendo ela destra o corte dava-se da esquerda para a direita tendo na base mais queijo que na parte de cima, como fazem tradicionalmente com os cortes de pães italianos.
Sobre seus feitos e empenho nada comentou a princípio e tão pouco achou que iria fazê-lo em outra hora como acabou acontecendo. Entretanto, ele veio sentar-se com ela para então tomarem o café da manhã juntos naquela manhã chuvosa de sábado. O assunto corria para um lado qualquer até que ele, o dono do queijo, resolveu tirar lascas para seu próprio lanche.
É nesse momento em que a tragédia será anunciada. Como me cabe narrar todo o acontecido achei importante pontuar esse primeiro clímax de todo o blá, blá, blá que vem a seguir. Apresentado assim até parece que as coisas foram feitas propositadamente para desencadear essa série de ações próximas. Isso porque já sei de tudo – do princípio ao desfecho – e consigo com clareza explicitar cada passo dado por nossa protagonista e seu antagonista em questão. O fato é que como se trata de uma história real acontecida outro dia com todos esses pormenores escritos – e muito provavelmente alguns outros incluídos para mode florear o conto – fica-me fácil dizer que tudo foi assim mesmo, e talvez possa parecer que conduzi as coisas para terem elas o rumo que me fosse mais aprazível. Só posso então dar a minha palavra e dizer que os ocorridos ocorrerão por conta própria sem a minha intervenção.
De volta a cozinha e a mesa, estavam lá os dois de frente um pro outro dissertando sobre banalidades quaisquer quando ele decidiu que seu lanche seria recheado com fatias mal-cortadas de queijo. Foi nesse momento também que ficou claro para ela o desdém dele para o trabalho artesanal dela que havia esculpido no queijo – com algumas boas talhadas - uma superfície extremamente plana.
Enquanto seus pensamentos tornavam-se caraminholas seus olhos atentavam para o pouco caso do moço que arrancava pedaços ao léu do queijo. Em primeiro momento ela poderia pensar que ele tinha feito pouco de seu trabalho ao acertar o corte do queijo, mas definitivamente não havia feito nada esperando algum tipo de reconhecimento, nem tampouco ele tinha idéia do que ela fizera em seu queijo. Pensou em repreendê-lo pela falta de zelo, mas imediatamente se deu conta que não teria argumentos plausíveis para convencê-lo de que o melhor para o queijo era ser cortado de modo pragmático. Foi então que algumas imagens esquecidas nas profundezas de sue arquivo mental vieram à tona e nelas estavam seu pai, e também o seu avô, de faca em punho cortando queijos de todos o tipos.
- Céus! Escapou-lhe dos lábios.
- O que foi? Perguntou ele interrompendo a nova fatia.
Quando ela se deu conta de que seu hábito de cortar o queijo de maneira simétrica não passava de uma neurose herdada por gerações – duas que ela tinha conhecimento – de sua família, suspirou fundo em um ato de redenção. Então será que teria deles em seus gestos, gostos e atitudes para todo o sempre? Era a isso mesmo que estaria condenada até sua última piscadela de olhos antes de fechá-los eternamente? Todos esses últimos anos passados esfregando sua pele milhares de vezes tentando limpar-se do que não era em sua essência seu não tinham sido suficientes?
Estamos próximos a partir para o desfecho dos atos e quero aproveitar para me retratar e assim esclarecer a minha preferência por editar drasticamente o diálogo que ameaçou acontecer linhas acima. Acontece que o tête-a-tête discorreria longo e trataria simplesmente desse momento de clarividência dela, em que tudo se encaixou nos conformes dentro de sua cabecinha e ela percebeu que foi condicionada todo esse tempo a cortar queijos com perfeição. Em tempo algum, porém, questionou a atitude dos seus ascendentes que ritualizaram esse momento. Deu-se conta que cortava assim porque sim, mas não saberia dizer no que isso altera ou deixa de alterar as propriedades do alimento. Enfim, foi para poupar-lhe o tempo, caro leitor, que decidi continuar a narrativa deixando o conversê dos personagens para lá. Até porque não sei até onde é válido publicar para quem quiser ler uma conversa tida por duas pessoas entre quatro paredes. Nesse caso então, em posse de duas boas justificativas, preservei a intimidade dos dois e prossegui relatando o drama que é, ao meu ver, o que mais tem validade na atual conjuntura das coisas.
Não posso dizer aqui que ela ficou triste nem posso dizer que ficou feliz – mesmo porque ser humano nenhum pode ser assim tão binário. A questão mesmo é que suas últimas certezas que formara sobre sua própria pessoa foram descaradamente colocadas em xeque. Ela que nesses últimos anos viveu sozinha convenceu-se em seus momentos de solidão que se tornara outra pessoa. Ou ainda melhor: tornara-se uma pessoa. Alguém que ela pôde lapidar sozinha finalmente, retirando o que haviam lhe impregnado na alma durante toda a sua criação.
Nunca acreditou que esse era um privilégio dela. Falou inclusive, todo esse tempo, pra quem quisesse ouvir, que era possível livrar-se dos elementos que nos foram enfiados guela abaixo ao longo da infância e adolescência. Nos primeiros dias em que viu-se só em uma casa inteira sua, notou isso em pequenos atos. Os hábitos que tinha na casa da mãe eram desnecessários no novo lar. A louça poderia ser lavada a qualquer momento e as roupas poderiam ficar no chão amontoadas. Depois começou a ter apreço pela habitação e passou a arrumá-la com freqüência, mas ainda assim, no seu ritmo. As preferências começaram a desabrochar sem a interferência de ninguém. Não era tão ansiosa, a avó que dormia em seu quarto há anos é quem era. Não gostava de ouvir noticiário enquanto comia o pão com manteiga pela manhã. Ouviu todos esses anos porque o pai ligava o rádio. Não falava alto, ao contrário, poupava a voz sempre que possível, mas na casa da família italiana os decibéis eram ilimitados.
Também não sei de que adianta tantos exemplos assim, porque só ela sabe do que se libertou e no que se transformou. O fato é que virou borboleta já há algum tempo e quanto a isso não cabem dúvidas. E agora aquele maldito queijo cortado para fotografia de anúncio de revista cuspia em sua cara que provavelmente, mesmo nua, teria deles todos um pouco. Que seja!
Pensando bem suas roupas no armário sempre foram guardadas por preferência sua seguindo uma escala de cores degrade. Os livros e discos organizados por ordem alfabética e gênero. Em uma última análise rápida mental assumiu para si o gosto pela perfeição estética, pelas linhas retas, pela organização. Percebeu que o queijo estar ou não bem cortado não alteraria seu humor, como acontecia com os que lhe ensinaram assim. Ao contrário, causava-lhe prazer poder arrumá-lo como queria. Então, talvez até preferisse que ele cortasse torto, para que ela pudesse ajeitá-lo a seu modo. O café terminou agradável como todo o resto do dia. Tudo acertado. Conformou-se estar sujeita a possíveis atos falhos e imprevistos da vida. Só assim poderia mesmo voar livre.

Monday, May 14, 2007

Tempo



No último telefonema quando perguntou ao avô se tudo andava bem, ouviu uma menção de lamúria. Então era mesmo verdade, pensou. A avó já havia alertado que ele vinha desgostoso com a vida, talvez um pouco inconformado por não ter empacotado. Batido as botas de uma vez.
- Ah, Carola! Bem eu estou. Sempre estive. O problema é estar há quase noventa anos. Isso, de viver, está me cansando um pouco!
Enterrou a mãe, o pai, os três irmãos, a filha, um neto e a bisneta prematura. Constituiu duas famílias, viajou o mundo, aprendeu línguas, ganhou muito dinheiro, perdeu outro tanto.
Há anos acorda todo dia antes do Sol nascer. Levanta rápido e toma uma ducha gelada para despertar todas as células de uma só vez. Toma um café preto e pão com manteiga que deixara premeditadamente em cima da mesa na noite anterior para amanhecer cremosa. Duas ou três fatias de queijo e um passeio pelo bairro completam a rotina antes do trabalho. Antes corria. Depois passou a trotar e por fim, andava rápido por quase uma hora.
Formou-se advogado no final da década de 30 do século passado no Largo São Francisco. Nessa ocasião morava no centro de São Paulo, onde montou escritório, o mesmo em que advoga até hoje. Nos dias frios, levantava pelado da cama, vestia o sobretudo, e chegava até a banca da esquina. Comprava quadrinhos, o jornal do dia e barras de chocolate.
Primogênito, foi o último a casar. Jamais resistiu a um rabo de saia. Entregou-se a paixões ardentes e casos banais. Amou as mulheres – todas que pode – até quando isso lhe foi permitido. Do primeiro matrimônio vieram duas filhas. No seguinte apenas um menino. Carola, a neta mais nova e preferida, era rebento da filha falecida.
Cozinheiro de mão cheia esteve sempre a frente do menu do almoço de domingo. As duas esposas nasceram sem dom algum para a culinária. Já a neta tinha herdado suas habilidades.
Quando ainda usava fraldas e começava a equilibrar-se em cima do par de pernas gordinhas, Carola enroscava-se nas pernas do avô interessada em provar antes dos outros as receitas do patriarca. Ele pegava a menina no colo e a deixava sentada em cima da mesa. Ao virar as costas ela dava um jeito de descer pelas cadeiras e arrastava-se até perto do fogão novamente. O paladar por chocolate comprovou-se hereditário além do hábito de andar sem roupas pela casa.
Morou alguns anos da infância com ele. Depois, adolescente, revezava entre as casas dos pais separados e a dos avós queridos. Voltava da escola e passava as tardes escrevendo nas enormes e antiguíssimas máquinas de escrever do velho. Ele voltava do escritório pouco antes das 17h, colocava a pasta na escrivaninha, beijava a testa da garota e ia para a cozinha. Na mesa a avó havia deixado salada, a travessa de arroz e um grande bife cru. Ele ligava o radinho de pilha e fritava a carne de leve, para ser servida ainda sangrando. No prato fatiava duas ou três pimentas de cheiro e misturava com as folhas. No arroz pingava ainda algumas gotas de um combinado de outras pimentas em conserva.
Após o almoço subia para o quarto com o jornal embaixo do braço. Recostava-se na cama e punha-se a ler duas ou três manchetes. Depois pegava no sono. Muitas vezes com o palito de dentes na boca e o jornal caido em seu peito, subindo e descendo a cada roncada barulhenta. De noitinha assistia filmes policiais na sala de televisão com halteres em punho exercitando os músculos dos braços fortes.
Nos finais de semana, quando a rotina era quebrada, ouvia tangos belíssimos. Carola logo apaixonou-se pelo gênero e, ainda criança arriscou uns passos com o vô. Ensaiavam escondidos e depois mostravam para toda a família.
Desde moço sofria de um considerável tremor nas mãos e com o passar dos anos teve o caso agravado. Em uma visita para apresentar o novo namorado, Carola ficou ressentida porque ele não sentou-se à mesa com os outros. A avó chamou-a de canto e confessou que ele tinha vergonha de comer na frente de estranhos, porque a mão balançava muito e a comida caía de volta no prato antes de chegar à boca. Ela engoliu um silêncio seco.
Deu-se que de uns tempos pra cá ele foi perdendo também a audição, além da visão que andava turva. Não renovaram sua carta de motorista, o que causou-lhe grande amargor. Sentia-se um tanto amputado sem poder ir e vir com seu carro. Agora era a mulher quem o levava para a praia nos feriados.
A primeira vez que Carola dirigiu não tinha mais do que nove anos. O avô colocou-a no colo para que pudesse comandar o volante. Aos doze começou a correr de kart no interior, onde ele fazia questão de levá-la todo final de semana. Com dezesseis ganhou seu primeiro carro que a mãe confiscou de imediato repreendendo o próprio pai que foi considerado irresponsável.
Quando em uma conversa informal a avó lhe disse que o vozinho andava chorão e questionando o porque da vida tão longa Carola sentiu o peito apertar. O nó na garganta gerou um par de lágrimas que escorreram doídas. Veio-lhe em mente um sonho recorrente que tinha desde a infância em que, justamente, recebe a notícia da morte do avô querido e acorda aos prantos.
Recolhida em seus pensamentos lembrou com saudades da sua primeira bicicleta e da paciência do avô para ensiná-la a pedalar. Aos sábados entravam sem permissão no estacionamento de um banco fechado para que ela ensaiasse suas primeiras pedaladas. Em pouco tempo e alguns tombos feios já andava sem ajuda nem rodinhas. Então passeavam os dois juntos explorando novos caminhos de terra que levavam até o sítio da família.
E nessa última vez que ligou para o avô e escutou seus lamentos teve certeza de que o tempo deles estava mesmo chegando ao fim. Pegou o carro e foi visitá-lo com duas bicicletas na caçamba. Arrastou o velho e passaram a tarde no parque pedalando e conversando sobre as expectativas da jovem e as memórias de seu grande ídolo e fã. Assim como pede uma tarde de outono, sem pressa nenhuma.

Tuesday, April 03, 2007

Infância


O nome dela era Jéssica. Sua primeira namorada de infância. Primeira e única, que fique claro. Não que tivesse preconceitos ou coisas do gênero. Ela jamais afirmaria que nunca mais haverá outra mulher em sua vida, mesmo tendo grande adoração por cheiro de homem e outras coisinhas mais. A questão é que não houve até hoje.
A Jéssica era vizinha da sua avó e uns dois anos mais velha. Brincavam nas férias, quando ela passava o mês todo por lá. Não fugiam muito as regras: boneca, casinha, comidinha, corda, amarelinha. Coisas de criança.
Adoravam quando o tio e a namorada do tio as levavam para tomar sorvete ou ir ao parque. Ele estava na faculdade ainda, era bonito, esportista, aventureiro. Um verdadeiro herói. E gostava de beijar na boca. Em qualquer oportunidade estava lá de boca grudada com a namorada. Fazendo carinho, mexendo no cabelo. No carro, deixava a mão direita repousando na perna dela. Chamavam-se de “mô”. Mô pra lá, mô pra cá.
Na casa da Jéssica tinha um quartinho nos fundos abarrotado de brinquedos. Em uma das paredes ficava um sofá de frente para a televisão preto e branco. Era lá que passavam as tardes frias de julho, tomando ovomaltine.
Nunca mais se viram e isso faz anos demais. Provavelmente não se reconheceriam na rua. Ela só lembra dos dentes muito brancos de Jéssica que não gostava de açúcar nem nada que fosse doce. Não tinha nenhuma cárie em nenhum de seus dentes de leite.
Jéssica não era bonita, disso ela sabe. Mas tinha dentes brancos e um beijo inesquecível. Esqueceu-se, porém, de como foi que tudo aconteceu. Só lembra do sofá e das horas que passavam se beijando. Não beijavam com tesão, apenas imitavam o tio.
Ali no sofá, a Jéssica fingia dirigir um carro imaginário, e deixava sua mão na perna dela. Quando paravam no suposto farol, era hora do beijo. E ficavam assim, com as bocas coladas e os lábios frouxos. A língua deslizando suave de um lado por outro. As vezes parada, as vezes molhando o cantinho da boca. As mãos, delicadas, tocavam as nucas, orelhas. Os olhos fechados lembravam da cena real. Inspiravam-se nela e faziam igualzinho. Com a mesma ternura.
Ao menor sinal de barulho o amor era interrompido. Sabiam que ninguém poderia ver como atuavam bem representando o tio e a namorada. Mas não conseguiam parar de fazê-lo, e não sentiam qualquer tipo de culpa ou vergonha.
O namoro era ingênuo. As mãos apenas afagavam os rostos sem explorar o resto dos corpos. Esses também não pediam por mais. Ela gostava do molhado das bocas quentes e macias. Gostava do gosto úmido, sem açúcar. Justo ela, viciada em doces.
Não se lembra por quantas férias isso se repetiu. É bem provável que tenha sido uma só e nada mais. Mas recorda-se que em uma temporada, Jéssica tinha arrumado uma amiga mais velha da rua de baixo. Como elas não a excluíam de nada, não sentiu ciúmes. Chegou a ir algumas vezes na casa da nova amiga. Mas o romance estava claramente desfeito. Não cabia mais ninguém na relação.
Quando finalmente beijou um rapaz, anos depois, sentiu-se um pouco invadida. A língua mexia rápido, ia e vinha sem ritmo. Os braços abraçavam desajeitados. Havia platéia assistindo. Ficou com vergonha contando os minutos para ir embora.
Ainda assim tentou de novo. Com outra pessoa. Foi tudo mais lento e envolvente. Os lábios se encaixaram bem, as mãos eram carinhosas. E tinha um cheiro que a deixou inebriada. Forte e persistente. Conhecera então seu primeiro namorado.
Até hoje não sabe se gostou dele ou se gostava de estar com um homem somente. Em pouco tempo ele começou a perambular com as mãos por dentro da roupa dela, que achava aquilo interessante. Diferente talvez. Mas não sentia arrepios ou molhava a calcinha. E quando ele colocou a mão dela dentro da calça dele, ficou sem graça porque não sabia como manusear aquilo.
Gostava de beijá-lo. Bastante. Mas era indiferente a nudez ou estímulos sexuais. Fazia quase tudo o que ele pedia para ela fazer. Não pensava em penetração de forma alguma. Ainda era muito nova e a falta de tesão não a incentivava em nada.
Depois de mais de dois anos foi convencida a praticar sexo oral. Apesar da estranheza sentiu semelhanças ao beijo. Sua língua lambia suave e os lábios roçavam na medida. Achava graça nas caretas dele e na afobação que tinha ao pressionar a cabeça dela para baixo. E ainda assim, ela não tinha trimiliques.
Terminou o namoro. Engatou outro na sequência e nada. Foi só na terceira tentativa, quando os corpos se encontraram pela primeira vez, que se sentiu realmente excitada. Não saberia explicar o que era, mas era. Sem dúvidas. E a primeira vez que se viu plena em um orgasmo desabou a chorar. Havia se livrado finalmente da Jéssica e seu amor infantil.

Wednesday, January 24, 2007

Silêncio


Quando criança Liló brincava sozinha quase todos os dias. Filha única de pais separados que trabalhavam fora de casa, foi criada pela avó. A rotina de acordar cedo, tomar nescau e assistir desenhos na televisão, era quebrada vez ou outra, por suas brincadeiras secretas. Ela tinha para si que nunca estava totalmente só. Moravam dentro de sua cabeça um punhado de amiguinhos sempre dispostos a se divertir a valer.
Quando decidiam por fim o que fazer, iam todos dar uma volta de bicicleta no quarteirão. A avó da menina não apresentava resistência alguma, contanto que a menina se mantivesse na calçada. Na bike começou a desenvolver suas primeiras habilidades profissionais. Trabalhava como corretora de imóveis. Seus amigos imaginários interpretavam os clientes que a consultavam em busca da casa de seus sonhos. A menina apontava as diversas opções disponíveis no bairro residencial em que morava. Os negócios eram fechados ali mesmo, na rua. Sem essa burocracia toda de contratos, fiadores ou dinheiro. Gostou, levou e pronto! Mesmo porque nada a impediria de vender ou alugar o imóvel novamente, em um outro passeio ciclístico.
Em dias de chuva a brincadeira era com os copos e taças da cristaleira da vózinha. Ela era a professora, e eles por sua vez, os alunos. Os copos de uísque, por exemplo, eram sempre encarados como meninos, enquanto as taças de champagne, mais esbeltas, representavam as meninas. Classificados os sexos ou ela perdia horas em busca da disposição perfeita dos “alunos” em uma suposta sala de aula, ou então, definia os pares para a inventada festa junina da escola. Sempre prezando um senso estético de acordo com o tipo físico de cada um, além do bom comportamento de cada copo durante o ano letivo.
Os produtos de beleza do banheiro também estavam sujeitos a essa brincadeira. Acontecia geralmente quando ela estava com preguiça de tomar banho. Trancava a porta, ligava o chuveiro, e ficava por horas organizando a “criançada”.
No banheiro acabou dando seu primeiro beijo. Na parede, diga-se de passagem. Com a puberdade a caminho, passou a freqüentar festas badaladíssimas dentro do cômodo de sua casa. Começou a fumar lá dentro, inclusive. Pegava escondido um cigarro da vó para levar para o evento.
Nessa época já estendia seus passeios de bicicleta por todo o bairro e arredores, inclusive para ir ao condomínio fechado em que as amigas moravam. Lá a fantasia começava a tornar-se realidade, e vira e mexe alguém realmente organizava uma festinha bacana. E também com essa freqüência o pessoal inventava um jeito de ir dar umas beijocas na quadra, que ficava atrás das casas em um local com pouca iluminação.
Uma vez um menino que morava lá, pediu para as amigas que levassem Liló em frente a casa 7 para que ele declarasse sua paixão. A menina, desacostumada a acontecimentos desse tipo na vida real, entrou em pânico e foi embora sem dar tchau para ninguém.
Já na adolescência começou a cultivar gnomos, duendes e outros hábitos místicos. Tinha em seu quarto uma estante cheia de velas, e pedras, e incensos. Agora passava as tardes conversando com os novos amigos gnomos. Quando procurava alguma coisa em casa e não encontrava, atribuía a culpa à personalidade brincalhona dos pequenos. Ficava furiosa. Brigava com eles em alto e bom som.
As confissões mais íntimas e outras histórias malucas iam sendo armazenadas em uma porção de caderninhos que estavam sempre à mão. A paquera do inglês, as brigas dos pais, as fofocas com as amigas. Tudo registrado com cabíveis ênfases para o que supunha mais interessante. A realidade transformada de acordo com suas preferências misturadas com boas doses de suposições e fantasias. Com o hábito das escrivinhações foi perdendo pouco a pouco o critério entre o registro do fato em si e o que era acessório, fruto de sua imaginação.
Com a faculdade terminada e o trabalho ocupando grande parte do seu tempo, abandonou as anotações. Os gnomos estavam encaixotados há anos, desde quando mudou-se para um apartamento pequeno e não encontrou mais espaço ou razão para expô-los.
As diárias doze horas trancafiada no escritório, trouxeram de presente o maior de seus tormentos: a paixão pelo chefe casado! Foram inúmeras as noites que ela dormiu com ele em pensamento. Viajavam sempre juntos, almoçavam e tomavam um vinho a noitinha com muita constância, sem que ele sequer imaginasse estar presente no recinto. Passou a conversar sozinha na rua sem pudores. Imaginava diálogos com o moço a toda hora. As conversas variavam entre banalidades cotidianas, o andamento da separação com a esposa, além de tórridas declarações ao pé do ouvido.
Em um dado momento resolveu comprar uma cama de casal, para que ficassem mais a vontade. Daí por diante as aquisições eram sempre em dobro. Comida para dois, duas escovas de dentes. Até um chinelo para ele chegou a colocar no pé da cama.
Um dia convidou a mãe para conhecer o namorido. Marcou um jantar. Preparou um risoto, abriu um vinho caro. Colocou três lugares na mesa. Quando o interfone tocou atendeu ansiosa. Ainda deu tempo de arrumar a gravata de seu amor antes de abrir a porta.
- Mãe, esse é o Gilberto. Gilberto, essa é minha mãe.
A mãe deu risada e ainda perguntou que brincadeira era aquela. Liló respondeu que falava sério. Eles estavam morando juntos há algum tempo. Gilberto finalmente tinha se separado da ex-mulher e agora morava com ela. A mãe ainda observou em volta. Existiam mesmo vestígios de presença masculina pela casa.
- Filha, não há ninguém aqui.
- Como assim mãe?! O que o Gilberto vai pensar da senhora?
Discutiram muito até que Liló, aos prantos, pediu para que a mãe fosse embora. Correu para o quarto e pegou a caixa de fotos para rever todo o romance. Ele estava lá, presente, em todas elas. Abriu o armário e as roupas de Gilberto estavam todas penduradas. Correu de novo para a sala e ele a esperava no sofá com um leve sorriso nos lábios.
- Tudo bem, Liló. Já passou. Falou ele baixinho para ela.
A moça então trancou a porta de casa, apagou a luz, acendeu as velas que ficavam em cima do aparador e fez amor em silêncio até adormecer.