Thursday, September 21, 2006

Rio


Esperava o ônibus que naquele dia demorou mais do que o habitual. Não estava frio, mas ventava gelado. Quando finalmente entrou no coletivo, e pagou a passagem, apenas um assento estava vazio. Lá no fundo. Daqueles bancos ao contrário, que ficam virados para trás. Vacilou por alguns segundos, com medo de ficar enjoada até o fim da viagem. Não gostava muito de ir de costas. Sentia náuseas. Lembrou que esquecera seu livro em casa, e portanto, nada tinha para fazer até o momento de descer no ponto de casa. Sentou por fim.
Vivia um momento de introspecção. Descobrira com auxilio da psicóloga que tinha dificuldades em aceitar seus sentimentos. Não admitia sofrer ou ficar triste. Por isso fingia pra si própria nos momentos de dor, estar bem. E agora parece que aquela porção de tristezas acumuladas durante a vida, e devidamente arquivadas sem leitura, vinham à tona de uma só vez. Como que sugerindo uma chance para passar as coisas a limpo.
No emaranhado dos sentimentos voltavam em sua mente as cenas todas de sua história. Lembrava de tanta gente, de tantos momentos. Aquela velha história do filme que passa na cabeça. As vezes sorria pensando em um beijo, e pela primeira vez, num ato de redenção, chorava também. Notava o quanto a vida era cíclica e vivia pregando peças. Enumerava a quantidade de vezes em que repetia os mesmos gestos, e tinha as mesmas atitudes. Suas esquivas eram tão previsíveis. Parecia fazer questão de não inovar jamais. Percorrendo o mesmo caminho.
Naquele exercício de voltar no tempo e ir fundo dentro do coração passou a se surpreender com tantas coincidências. Os anos passavam numa mesmice só. As mesmas oportunidades apresentadas, mudando apenas os personagens. E ela, com medo do novo, fazia sempre as mesmas escolhas e negações. Isso era nítido no restaurante preferido, onde jamais variou o pedido. Também quando escolhia suas roupas repetia as combinações. O sorvete invariavelmente de creme, senão não comia. Sempre ia trabalhar de ônibus para otimizar o tempo e colocar em dia suas leituras. Quando esquecia o livro em casa sentia-se nua. Acordava às 8h05 e repetia o ritual de anos. Quando acordava mais cedo o dia não rendia, e ao atrasar-se tudo dava errado até que pudesse dormir novamente.
Os namorados escolhera sempre baseada em pré-requisitos quase inconscientes. Seguiam um certo padrão estético. As outras oportunidades que fugiam desse molde eram descartadas sem dó. Com facilidade. Os que passavam no teste, enjoavam-na pouco tempo depois. Mas o próximo seria de qualquer forma, parecido com o anterior. E sempre, sempre mesmo, entre um e outro, surgia aquele que fugia as regras. Mas ela lhe dava as costas sem remorsos.
Achava-se bem resolvida por conta disso tudo. Prática. Tinha sua rotina, tinha seus gostos bem definidos. Superava as dificuldades com habilidade invejável, pois jamais duvidou das surpresas boas do dia de amanhã. E quando, recentemente, desabou a chorar por dias a fio sem ter claro em sua mente os motivos, desconfiou do seu reflexo no espelho pela manhã, enquanto escovava os dentes. Aliás, foi enquanto escovava os dentes que a primeira lágrima escorreu. E no ônibus fez um esforço absurdo pra segurar na garganta a cachoeira que tinha dentro de si. Porém, no trabalho perdeu a compostura, e a chefe a mandou de volta para casa. Por sorte, era uma sexta-feira e pode passar o final de semana trancada no quarto aos prantos. Na segunda, sem conseguir mais conviver com ela mesma, procurou uma psicóloga.
Foi depois de algumas sessões, na busca do tal auto-conhecimento, que entendeu que era avessa a mudanças. Que tinha receio do novo, e só ficava em paz quando nada saía do seu controle. Por isso não variava jamais suas escolhas, com medo de não gostar. Medo da decepção. E ainda assim, quando além das suas vontades o destino lhe trazia desgostos, fingia que não era com ela. Que não tinha acontecido. Esquecia palavras, momentos e pessoas se assim fosse preciso. Engolia o choro e estampava o sorriso. Voltava à rotina, ao dia a dia. Como se nada tivesse acontecido.
Mas agora já não dava mais. O coração estava superlotado de mágoas. Ele tinha vontade própria de esvaziar-se independentemente dos desejos conscientes dela. Chorava quando bem entendia. E depois de cada chororô vinham as clarividências. Como se lavasse mesmo sua alma. O reconhecimento das oportunidades perdidas e desperdiçadas. Começara a baixar a guarda para o novo e até vinha se divertindo com o imprevisto. Abria-se pouco a pouco para ela mesma. Ia se conhecendo um tiquinho mais todo dia, e assim, tornando-se íntima dela própria. Fazia as pazes com seu ser. Respirava fundo quando prestes a ter uma recaída. Conversava sozinha e seguia em frente.
Na medida que as descobertas culminavam mudanças profundas internas, percebia externamente, que as coisas todas ganhavam mais cor. Todas elas. Vivas e brilhantes. Sorrindo de volta. Era o fim da vida em preto e branco. As portas todas se abriam para as surpresas coloridas e também para as doloridas. Sem medo.
E ali no ônibus, na poltrona invertida, ela não podia ver o caminho que seguia. Não sabia se ele viraria pra direita ou pra esquerda. Encontrava-se totalmente impotente quanto ao próximo movimento do motorista. Mas olhava fixamente para o vidro traseiro do coletivo. Ia vendo tudo o que ficava pra trás enquanto todos, dentro do ônibus, seguiam adiante. E daquele novo ângulo descobriu lugares, placas e vistas que nunca tinha notado, ainda que fizesse aquele trajeto há anos. Porque jamais o fizera de costas, olhando o que passou ao invés de enxergar o que viria. E naquele momento teve certeza que em tempo algum poderia saber o que tinha deixado pra trás quando fizera suas tantas escolhas. E naquele momento também, sentiu uma sensação deliciosa de liberdade, como se tivesse agora seguindo o fluxo natural do rio e desistido de lutar contra a correnteza.