Monday, May 12, 2008

Caleidoscópio


Sua vida em nada se assemelhava a uma linha reta. Sair de um lugar e chegar a outro pré-determinado estivera longe de ser um hábito. Parecia que em seu caminho sempre havia curvas, atalhos e obstáculos demais que a impediam de concluir um trajeto como planejara inicialmente. Talvez lhe faltasse firmeza para seguir adiante, talvez um costume antigo de se deixar levar, e quem sabe ainda, uma curiosidade latente que lhe impedia de recusar qualquer que fosse a oportunidade ofertada. E assim girava em círculos, hora olhando para o chão concentrada em seus pensamentos, noutras observando o mundo tentando adivinhar o que ía na mente alheia.
Sua habilidade maior – fruto de um senso apurado de direção – era voltar ao ponto de partida. Bastava dar errado que ela retornava para o lugar de onde tinha saído e tentava novos rumos. As vezes, até quando achava que tinha chegado a um local seguro, revisitava o marco inicial de seu trajeto para tentar reafirmar para si própria que estava mesmo no endereço certo. Vivia de certezas com prazo de validade e duvidava das próprias escolhas. Provavelmente duvidava dela mesma e por isso precisava ter o tempo todo alguém por perto que lhe servisse como referencial.
Foi na primeira vez em que decidiu que tentaria caminhar sozinha, só para variar e experimentar coisas novas, que surpreendeu-se ao se deparar com um inédito e instigante triângulo. Apaixonou-se por um alguém que já tinha o seu bem e viu-se presa e empacada nesse capítulo de sua história. O formato novo lhe confundiu as idéias que não estavam habituadas aos limites naturalmente impostos pelos ângulos. Beirou a loucura e viu-se maluca com a restrição da nova condição. Perdeu seu referencial e não conseguiu voltar a largada seguindo a esmo.
Os novos passos surgiram trêmulos. Caminhava sem direção ou conhecimento do porque ia em frente. A cada nova investida sentia que deixava para trás a ingenuidade de quem cria em finais felizes. Seu andar a levava para o oposto de onde viera e com freqüência desconhecia seu reflexo no espelho. Suas poucas certezas desmoronavam com lágrimas quentes em noites mal-dormidas. A antiga falta de segurança tornara-se uma gravíssima falta de identidade que a consumiam diariamente em um processo degradante de auto flagelamento. Ter dentro de seu coração tanto amor e ser impedida de consumi-lo lhe causava uma frustração corrosiva. Um desses sentimentos agudos que vêm acompanhados de dor física no peito, frio na barriga e nó na garganta. Um desses sentimentos avassaladores que entorpecem e viciam.
O processo de desintoxição deu-se lento, devagar, quase parando. Precisou de toda uma eternidade para recolher seus cacos e criar com eles novo molde. Reconstituiu-se a seu bel prazer. Mudou o cabelo, a forma de se vestir e a entonação da voz. Arrumou para ela uma nova personagem para ver se assim também ganhava um novo enredo.
Na segunda vez em que decidiu que tentaria caminhar sozinha, em um apelo consciente de quem buscava se conhecer e se aceitar, percebeu que os triângulos não haviam saído de sua vida, e retornavam o tempo todo de maneira cíclica. Mudavam nomes e rostos. Permaneciam a incompreensão e a desilusão que a essas alturas já ganhavam ares de descrença plena no amor entre dois. Seu velho costume de aceitar tudo o que a vida lhe trazia sem reagir começava a lhe causar embaraço. Sentia-se cada dia mais impotente e frustrada.
Quando decidiu reagir e negociar quais eram suas reais vontades notou sua falta de discernimento para saber como prosseguir. Deu o primeiro passo aconselhada por pessoas queridas e pouco depois viu-se novamente na corda bamba sem conseguir manter-se equilibrada. Quis correr rápido para fora de seu próprio corpo. Quis fugir para qualquer outra dimensão onde seus pensamentos a deixassem em paz. Desejou uma imediata imersão no silêncio profundo. Mas teve que contentar-se com a realidade esfumaçada sem manual de instruções ou orientações escritas. E clamou para que seu coração gritasse bem alto o que ela, desorientada, deveria fazer para andar nos trilhos.
A verdade é que quando olhava ao redor tinha a nítida sensação que no mundo dos outros os trilhos iam sempre retos. Então, quando olhava pra frente e via tanta opção de caminho, naturalmente se sentia confusa. E cansada de seguir sem eira nem beira tomou o comum pertencente a maioria como regra primeira para solucionar os seus problemas.
Foi quando rogou por ajuda que entrou – por vontade de suas pernas que a carregavam no colo - no vagão mais brilhante do trem que passava na sua frente naquele minuto. Entrou cabisbaixa e sentou-se quieta. Exausta com seus pesares caiu em sono profundo e deixou a alma ser anestesiada. Quando acordou o Sol brilhava forte e esquentava seu rosto pálido. Os olhos doíam com a intensidade da luz e um sorriso brotou tímido na face que outrora demonstrava temor. Não sentia mais as pontadas no peito e tão pouco sabia para onde o trem a havia levado.
Desceu no ponto final julgando-se incapaz de se decidir por alguma outra parada. Pisou o pé direito e depois o esquerdo na grama verde com um pouco de lama. Topou ali adiante com margaridas rasteiras e respirou um ar novo com cheiro de recomeço. Em linha reta chegou ao rio calmo e gelado. Tirou a roupa cuidadosa com a possível presença de olhares estranhos e entrou de mansinho até molhar cada pedaço de si. Ficou lá quieta deixando a água molhar e levar com ela as mágoas que trouxe no bolso. Notou que o aguaceiro seguia sem pestanejar o rumo que o rio lhe impunha. Propõe-se a mesma obediência. Desistiu de pegar orientações e tampouco agoniou-se por não ter em suas mãos um mapa que indicavam destinos. Naquele momento percebeu que tudo estava em ordem do jeito que estava. Para ela não cabiam planos, precisava somente fluir.

1 comment:

Lucia said...

Lindo Nara... muito lindo !
Você transformou em palavras exatamente o que é o caleidoscópio da vida ! Vivi cada momento do texto... parabéns.