Monday, June 18, 2007

Ruído


Foram perto de quarenta anos dele vividos no mesmíssimo endereço. A casa grande foi herança de algumas gerações da família e já acumulava mais de um século de construção. Eduardo nasceu ali quando era então endereço da avó. Criou-se lá também durante o casamento naufragado dos pais, motivo de boataria no bairro no final de década de 60. Avesso a mudanças, permaneceu na casa após o matrimônio, e em momento algum pensou em sair da residência quando nasceram os dois filhos.
A casa ficava em uma curva de uma rua extensa de duas mãos. Quando criança jogou bola, treinou boxe e desceu todas as ruelas paralelas a sua em cima de um carrinho de rolimã. Participou de campeonatos de bolinha de gude e botão. Empinou pipa, trocou figurinha e meteu e tomou uns tabefes de alguns outros moleques de sua idade. Mais velho namorou no portão – e nos quintais de casas vazias – e tirou racha de carro à noite com os amigos.
Apaixonou-se ainda menino pelo piano de cauda contemporâneo a inauguração da casa. Postado na sala por muitas décadas ganhou um cômodo exclusivo quando Eduardo já moço, assumiu-se músico de profissão. Dos quatros amplos e bem arejados quartos da casa, Eduardo havia escolhido o da frente para acomodar seu piano e toda a parafernalha musical. Isso porque, como bom músico brasileiro, sustentava-se dando aulas em casa para alunos particulares. Assim, o estúdio caseiro montado no primeiro quarto evitava que os estranhos adentrassem seu lar nos dias em que lecionava.
Os anos confinados em conservatórios de música trouxeram-lhe um estranho terror por barulho que intensificou-se com o avançar da idade. Junto a crescente aversão à sons caóticos viu também seu bairro prosperar. Aqui e ali abriram comércios variados e o tráfego de carros tornou-se notável. Já quando o primeiro filho nasceu o excesso de automóveis e transeuntes impossibilitava a partida de futebol de final de tarde na rua.
Foi justamente na época em que o segundo rebanho veio ao mundo que Eduardo deu-se conta que sua rua virara rota de ônibus municipais. Com o tempo e costume dos itinerários, os motoristas de transporte público perceberam o que ele e seus amigos notaram anos antes: a rua longa e reta permitia pisar no acelerador sem dó alguma. A única curva, em frente a sua casa, era também o único ponto do trajeto que pedia uma leve redução, muitas vezes seguida de pneus cantando.
O trânsito em pouco tempo instaurou-se por ali, e as freadas vinham acompanhadas de buzinas, motores, xingamentos e esporádicas batidas. A pasmaceira de outrora ganhara ares de orquestra urbana que só dava trégua nos finais de semana.
Eduardo ainda resistiu a qualquer tipo de providência, e só quase beirando a loucura decidiu que era tempo de mudar. Encaixotou tudo e arrastou por 300 metros até o quarto dos fundos que armazenava tralhas e bugigangas diversas. Construiu um corredor paralelo que ligava o portão de entrada a improvisada sala de aula, e respirou relaxado com o novo santuário silencioso.
Pouco depois a casa vizinha e germinada deixou de abrigar uma família para dar lugar a um restaurante por quilo. Já às seis da manhã as cozinheiras cantarolavam em alto e bom som um repertório de gosto duvidoso. Perto da hora do almoço era a vez da proprietária começar a gritar com os funcionários para que agilizassem os preparos antes da chegada dos clientes.
Eduardo retrucou. Bateu no restaurante mais de uma vez pedindo por silêncio e respeito. Depois chamou a polícia em vão outro tanto de ocasiões, e por fim começou a jogar baldes de água fria por cima do muro tentando acertar as cantoras de ocasião.
Infeliz em todas as suas tentativas gastou fortunas com portas e janelas anti-ruído e forrações de cortiça para abafar o som. O investimento foi bem-sucedido e talvez tudo corresse bem não fosse o vazamento da calha que em pouco tempo tornou o quarto inabitável para aparelhos eletrônicos e musicais em geral. Mudou-se novamente.
Dessa vez foram menos de 200 metros, para o quarto do meio, ao lado do jardim de inverno. Era sem dúvidas o mais agradável e onde o casal dormira até então. Os filhos, já adolescentes, passaram a habitar juntos o quarto da frente e eles – o casal - foram para um outro menor, enquanto o dos fundos rendeu-se ao mofo.
Meses depois, de uma única vez, as duas casas da frente da dele viraram da noite pro dia uma danceteria e um bar com música ao vivo. Estava fadado ao barulho ensurdecedor enquanto vivesse naquela casa, concluiu por fim. No dia seguinte comprou –como quem compra um novo par de sapatos - um apartamento no último andar em um bairro afastado daquele.
Entrou no novo lar com o pé direito e deixou escapar um suspiro de alívio, como que consciente de que havia comprado também sua paz. Levou dois dias para descobrir que seu novo endereço era rota de aviões. Chorou como criança ao ver cada uma das janelinhas do Fox 100 da Tam sobrevoando o prédio.
Meses depois padeceu em um ataque fulminante do coração. Enfim, o silêncio! Foi enterrado no cemitério central, na esquina das duas avenidas mais movimentadas da cidade tomadas por camelôs de artigos variados. À noite, quando já no túmulo esperava o sossego, as luzes de néon iluminaram a casa de shows e o karaokê japonês da travessa lateral.

1 comment:

Anonymous said...

Adorei, amiga!
Vc sabe que eu sou sua fã!
Beijos