Monday, June 04, 2007

Borboleta


Foi outro dia que percebeu que não estava curada como vinha achando de uns tempos pra cá. Dentro de si ainda havia vestígios de seu sobrenome. Renegou-o por toda sua trajetória em vida e só agora - sentindo-se livre do peso da hereditariedade – cogitava assiná-lo novamente não fosse aquele ato falho que a deixou desconcertada.
Sem mais delongas, vamos aos fatos ocorridos. Melhor que eu pronuncie o derradeiro que foi o responsável pelo desencadeamento da verdade. Ela não teria como se livrar do sangue que corria dentro de si. Querendo isso ou não. Teria que encarar-se assim do jeito que foi sendo moldada em seus vinte e médios anos.
Deve o leitor agora estar achando que coisa grave sucedeu-se já que venho me repetindo nessa mesma enunciação há dois parágrafos – e agora três. Aviso desde já que para alguém que absorve passivo essa narrativa talvez o caso não tome proporção alguma. Não abale e nem cause rebuliços internos, mas também deixo claro que para ela representou um deslize relevante. Por outro lado – rogo eu – que venha a ser um primeiro gesto de reconciliação de sua figura representativa com sua essência crua.
Foi assim, sentada a mesa de outrem que lhe preparava um suco de laranja, que viu um bom pedaço de queijo prato embalado em um plástico vermelho – como os devorados ao longo de toda a infância. O queijo embrulhado – ainda que com a embalagem já aberta – estava sobre a tal mesa, no canto. Ela colocou-o em primeira instância em cima de um pratinho.
- Puxa, você não faz idéia do quanto gosto desse queijo! Verbalizou.
Sua segunda ação foi imediatamente abrir o pacotinho e cortar um naco para si, que comeu assim, assim, sem mais nada, nem pão, nem nada.
- Nossa! O gosto é ainda o mesmo gosto. Com a boca salivando.
Depois mais uns três ou quatro pedacinhos. Talvez nem quisesse ter comido essa última fatia, mas a intenção ao cortá-la era outra. Ao tirar o queijo do plástico vermelho percebeu-o cortado de qualquer jeito. Seu dono havia arrancado-lhe pedaços sem nenhum tipo de cuidado ou simetria. Era notável que o cortava sem hesitação ou ritual. Tratava de enfiar-lhe a faca enquanto seus pensamentos corriam soltos para qualquer outro lado. Muito possivelmente jamais tenha se dado ao trabalho de olhar o queijo enquanto deslizava o corte – cego por sinal – de uma faca qualquer em sua superfície.
Definitivamente o queijo não perdeu seu sabor por conta disso como ela mesmo suspirou ao degustá-lo. Em todo caso, trabalhou atenta no retirar de cada fatia para moldá-lo reto, levemente na diagonal – sendo ela destra o corte dava-se da esquerda para a direita tendo na base mais queijo que na parte de cima, como fazem tradicionalmente com os cortes de pães italianos.
Sobre seus feitos e empenho nada comentou a princípio e tão pouco achou que iria fazê-lo em outra hora como acabou acontecendo. Entretanto, ele veio sentar-se com ela para então tomarem o café da manhã juntos naquela manhã chuvosa de sábado. O assunto corria para um lado qualquer até que ele, o dono do queijo, resolveu tirar lascas para seu próprio lanche.
É nesse momento em que a tragédia será anunciada. Como me cabe narrar todo o acontecido achei importante pontuar esse primeiro clímax de todo o blá, blá, blá que vem a seguir. Apresentado assim até parece que as coisas foram feitas propositadamente para desencadear essa série de ações próximas. Isso porque já sei de tudo – do princípio ao desfecho – e consigo com clareza explicitar cada passo dado por nossa protagonista e seu antagonista em questão. O fato é que como se trata de uma história real acontecida outro dia com todos esses pormenores escritos – e muito provavelmente alguns outros incluídos para mode florear o conto – fica-me fácil dizer que tudo foi assim mesmo, e talvez possa parecer que conduzi as coisas para terem elas o rumo que me fosse mais aprazível. Só posso então dar a minha palavra e dizer que os ocorridos ocorrerão por conta própria sem a minha intervenção.
De volta a cozinha e a mesa, estavam lá os dois de frente um pro outro dissertando sobre banalidades quaisquer quando ele decidiu que seu lanche seria recheado com fatias mal-cortadas de queijo. Foi nesse momento também que ficou claro para ela o desdém dele para o trabalho artesanal dela que havia esculpido no queijo – com algumas boas talhadas - uma superfície extremamente plana.
Enquanto seus pensamentos tornavam-se caraminholas seus olhos atentavam para o pouco caso do moço que arrancava pedaços ao léu do queijo. Em primeiro momento ela poderia pensar que ele tinha feito pouco de seu trabalho ao acertar o corte do queijo, mas definitivamente não havia feito nada esperando algum tipo de reconhecimento, nem tampouco ele tinha idéia do que ela fizera em seu queijo. Pensou em repreendê-lo pela falta de zelo, mas imediatamente se deu conta que não teria argumentos plausíveis para convencê-lo de que o melhor para o queijo era ser cortado de modo pragmático. Foi então que algumas imagens esquecidas nas profundezas de sue arquivo mental vieram à tona e nelas estavam seu pai, e também o seu avô, de faca em punho cortando queijos de todos o tipos.
- Céus! Escapou-lhe dos lábios.
- O que foi? Perguntou ele interrompendo a nova fatia.
Quando ela se deu conta de que seu hábito de cortar o queijo de maneira simétrica não passava de uma neurose herdada por gerações – duas que ela tinha conhecimento – de sua família, suspirou fundo em um ato de redenção. Então será que teria deles em seus gestos, gostos e atitudes para todo o sempre? Era a isso mesmo que estaria condenada até sua última piscadela de olhos antes de fechá-los eternamente? Todos esses últimos anos passados esfregando sua pele milhares de vezes tentando limpar-se do que não era em sua essência seu não tinham sido suficientes?
Estamos próximos a partir para o desfecho dos atos e quero aproveitar para me retratar e assim esclarecer a minha preferência por editar drasticamente o diálogo que ameaçou acontecer linhas acima. Acontece que o tête-a-tête discorreria longo e trataria simplesmente desse momento de clarividência dela, em que tudo se encaixou nos conformes dentro de sua cabecinha e ela percebeu que foi condicionada todo esse tempo a cortar queijos com perfeição. Em tempo algum, porém, questionou a atitude dos seus ascendentes que ritualizaram esse momento. Deu-se conta que cortava assim porque sim, mas não saberia dizer no que isso altera ou deixa de alterar as propriedades do alimento. Enfim, foi para poupar-lhe o tempo, caro leitor, que decidi continuar a narrativa deixando o conversê dos personagens para lá. Até porque não sei até onde é válido publicar para quem quiser ler uma conversa tida por duas pessoas entre quatro paredes. Nesse caso então, em posse de duas boas justificativas, preservei a intimidade dos dois e prossegui relatando o drama que é, ao meu ver, o que mais tem validade na atual conjuntura das coisas.
Não posso dizer aqui que ela ficou triste nem posso dizer que ficou feliz – mesmo porque ser humano nenhum pode ser assim tão binário. A questão mesmo é que suas últimas certezas que formara sobre sua própria pessoa foram descaradamente colocadas em xeque. Ela que nesses últimos anos viveu sozinha convenceu-se em seus momentos de solidão que se tornara outra pessoa. Ou ainda melhor: tornara-se uma pessoa. Alguém que ela pôde lapidar sozinha finalmente, retirando o que haviam lhe impregnado na alma durante toda a sua criação.
Nunca acreditou que esse era um privilégio dela. Falou inclusive, todo esse tempo, pra quem quisesse ouvir, que era possível livrar-se dos elementos que nos foram enfiados guela abaixo ao longo da infância e adolescência. Nos primeiros dias em que viu-se só em uma casa inteira sua, notou isso em pequenos atos. Os hábitos que tinha na casa da mãe eram desnecessários no novo lar. A louça poderia ser lavada a qualquer momento e as roupas poderiam ficar no chão amontoadas. Depois começou a ter apreço pela habitação e passou a arrumá-la com freqüência, mas ainda assim, no seu ritmo. As preferências começaram a desabrochar sem a interferência de ninguém. Não era tão ansiosa, a avó que dormia em seu quarto há anos é quem era. Não gostava de ouvir noticiário enquanto comia o pão com manteiga pela manhã. Ouviu todos esses anos porque o pai ligava o rádio. Não falava alto, ao contrário, poupava a voz sempre que possível, mas na casa da família italiana os decibéis eram ilimitados.
Também não sei de que adianta tantos exemplos assim, porque só ela sabe do que se libertou e no que se transformou. O fato é que virou borboleta já há algum tempo e quanto a isso não cabem dúvidas. E agora aquele maldito queijo cortado para fotografia de anúncio de revista cuspia em sua cara que provavelmente, mesmo nua, teria deles todos um pouco. Que seja!
Pensando bem suas roupas no armário sempre foram guardadas por preferência sua seguindo uma escala de cores degrade. Os livros e discos organizados por ordem alfabética e gênero. Em uma última análise rápida mental assumiu para si o gosto pela perfeição estética, pelas linhas retas, pela organização. Percebeu que o queijo estar ou não bem cortado não alteraria seu humor, como acontecia com os que lhe ensinaram assim. Ao contrário, causava-lhe prazer poder arrumá-lo como queria. Então, talvez até preferisse que ele cortasse torto, para que ela pudesse ajeitá-lo a seu modo. O café terminou agradável como todo o resto do dia. Tudo acertado. Conformou-se estar sujeita a possíveis atos falhos e imprevistos da vida. Só assim poderia mesmo voar livre.

2 comments:

Anonymous said...

Depois de tornar-se borboleta, é preciso enchergar as lagartas nos demais casulos, para não ajudar a tecer suas superfícies e impedí-las de sair dali.

Anonymous said...

Nenhuma borboleta tem a mesma coloração, nem voa da mesma maneira... mas os matizes de cor tem sempre a mesma origem.