Wednesday, June 27, 2007

Água




Foi assim que aconteceu, sem mais nem menos, que ela sentou e chorou. Começou num chororê que nem parecia que ia vingar. O rosto foi esquentando, queimando e ganhando um rubor inédito. Em pouco tempo já se fazia um chororô a vazar-lhe pelos olhos sem controle. Seguiram soluços de tremer o peito e o resto do corpo. A água extravasou-se também pelo nariz, que a essas alturas escorria ininterrupta.
Não digo que nunca tinha desabado em prantos, mas não se lembra quando nem o porque. E para ser mais exata talvez – com altas probabilidades – nunca tivesse mesmo chorado até secar. Porque agora estava prestes a tal. Encolhida em seu buá sentia que derramava aos pouco toda a água que tinha dentro de si. Esvaziava a alma e chegava perto da desidratação também.
Quando bebê de colo não deu trabalho. Dormiu no horário, comeu direito, abdicou das cólicas. Os dentes nascendo trouxeram-lhe incomodo, mas um tantinho de nada só. Suportável em todo o tempo. Foi pra escola no primeiro dia de aula sem apresentar resistência. Arrebentou-se no chão uma porção de vezes até consegui equilibrar-se em cima dos patins, e tirando uma lágriminha tímida que escorreu no canto do olho esquerdo, não achou que a dor seria empecilho para atingir a perfeição na prática do esporte.
Menstruou sem dramas e a TPM nunca lhe foi apresentada. Apaixonou-se loucamente por um menino do inglês que preferiu namorar sua melhor amiga. Ficou feliz pelo amor do casal. Partiu para o intercâmbio na Bélgica com o coração apertado, é verdade. Entretanto, o nó na garganta não veio e na hora do tchau no aeroporto abriu um largo sorriso. Os longos dias de estudo de cursinho cansaram-lhe o corpo e a mente, mas tudo feito por um ideal maior, sem stress algum. Subitamente perdeu a mãe e teve certeza debruçada no caixão que chegara o momento dela partir. Quando o marido - agora ex - pediu o divórcio, perdeu o chão por duas ou três semanas. Não sabia direito de que lado da cama dormir, nem tampouco cozinhar porções individuais. Desejou-lhe sorte na nova vida.
As amigas já desconfiavam há tempos desse seu otimismo desmedido. Outra, budista, acreditava estar em frente de um ser humano iluminado, livre de apegos. Aconselharam-na visitar uma psicóloga, que argumentou que a moça sofria de um tal complexo de poliana. O novo romance que engatou foi por terra da noite para o dia com justificativa do moço que dizia ser ela de uma frieza cortante.
Quando acordou naquele dia, o dia havia nascido como todos os outros. Não sentiu calafrios, palpitações, nem pressentiu coisa alguma. Estava atrasada, mas isso era parte da rotina. Pegou trânsito para chegar ao trabalho, o que também era de costume. Almoçou no restaurante de sempre, deu risada com os e-mails que recebeu dos amigos, leu o jornal online, lixou a unha em um momento de relax e voltou ouvindo música no carro. Chegou em casa, falou com o cachorro, pegou as contas do chão, jogou a bolsa no sofá, colocou uma sopa para esquentar no microondas. No quarto tirou a roupa e seguiu para um banho rápido. Prendeu o cabelo para não molhar, usou um sabonete novo, colocou o roupão e foi jantar.
A sopa estava salgada e lembrou-se de pedir a empregada para maneirar no tempero da comida. Ligou o rádio da cozinha e a boa música incentivou-a a aumentar o volume. Besuntou a cumbuca de azeite e pensou o que tinha de sobremesa. Deu-se conta que precisava ir ao supermercado quando viu o armário vazio. Tomou um copo de água fresca. Colocou ração para o amigo cão. Voltou para o quarto e sentou-se na cama nova que chegara naquele dia. Testou as molas do colchão novo forçando-as para baixo. A cama jogou-a para cima mostrando que era mesmo de qualidade. Ficou ali brincando de subir e descer com as molas do colchão por um tempo, lembrando da infância. Depois cansou.
Sentou de novo recostada nos travesseiros macios. E então, sem mais nem menos as coisas foram acontecendo. Veio vindo. Primeiro uma cosquinha no estômago. Doeu um pouco mais e subiu pro peito. Quando deu-se conta estava com a garganta ardida, quase sufocando. Os olhos embaçaram molhados e o horizonte ficou tremido. Rolou a primeira gota salgada e depois disso foram brotando milhares delas, jorrando lágrimas sem pausa para descanso. Ficou ali sentada, sem conseguir se mexer, chorando compulsivamente. Perdeu o controle. Chorou, e chorou, e chorou sem conseguir parar. Foram dias intermináveis chorando sentada. Até encolher, enrurrgar e dormir tranqüila sem mais acordar.

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